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Caderno de receita: Marc Ferrez

09 de setembro de 2020

Engana-se quem pensa que os interesses de Marc Ferrez se restringiam a chapas, plasmas, lentes e outros materiais relativos à atividade fotográfica por meio da qual fez, com sua câmera Brandon, os clássicos registros panorâmicos da cidade do Rio de Janeiro do século XIX.

 

Página do caderno de receitas de Marc Ferrez, com a receita de geleia de laranja. Acervo Marc Ferrez/ IMS

 

Nem mesmo as viagens que empreendeu Brasil adentro, onde fotografou cachoeiras torrenciais ou diáfanas, além de tribos indígenas, o afastaram do gosto pela culinária ou pelo bom drink. Ao descobrir, em um de seus cadernos, uma receita de geleia de laranja (Recette de confiture d’oranges), pede-se licença aqui ao selo Caderno de Escritores para ampliar a autoria do projeto e permitir que dele façam parte outros artistas, como o fotógrafo brasileiro de origem francesa que, pelo jeito, eventualmente gostava de trocar a câmera pelo fogão. Desse modo, legitima-se a inserção do manuscrito da receita.

A transgressão não para aí. É preciso esclarecer que a existência das imagens de sete cadernos de Ferrez no IMS, que vêm se somar aos três já existentes na instituição, se deve a uma parceria feita com o Arquivo Nacional, em 2017. Explica-me Ileana Pradilla, pesquisadora de fotografia do IMS e autora do precioso perfil biográfico publicado pelo IMS com o título Marc Ferrez – uma cronologia da vida e da obra, que, de acordo com os termos do contrato, cada instituição ficou responsável pela digitalização dos originais, em papel, dos cadernos sob sua guarda, mas ambas compartilhariam as cópias digitalizadas do total dos dez, e trabalhariam juntas na pesquisa e divulgação do conteúdo.

O acordo com o Arquivo Nacional enriquece, ainda que de maneira virtual, o arquivo Gilberto Ferrez, neto de Marc Ferrez, que vendeu ao Instituto Moreira Salles, em 1998, a coleção de cerca de 15 mil fotografias do século XX do avô, de que constam mais de 4 mil negativos de vidro e fotos originais, além de  itens variados, como os cadernos. Com essa transação o IMS inaugurou seu acervo fotográfico, hoje com 2 milhões de imagens.

Será bom lembrar que, nos três cadernos  originais sob a guarda do IMS, encontra-se uma espécie de inventário da obra de Marc Ferrez. Em dois deles há listas de negativos em vidro, observando ordem de tamanho e numeração das caixas em que estão acondicionados. O terceiro é intitulado “Catálogo de vistas, estradas de ferro, marinha”, com registros das obras realizadas por Ferrez como Fotógrafo da Marinha Imperial e das Construções Navais do Rio de Janeiro. Há nesse caderno um resumo de suas atividades, cuja administração era feita no lendário endereço da Marc Ferrez & Cia, na rua de São José, 96, centro do Rio de Janeiro, onde ele se estabeleceu em 1867.

É no conjunto sob a guarda do Arquivo Nacional, formado de cadernos com registros  de caráter mais pessoal, como anotações de viagens, despesas, saldos bancários, lembretes, etc. que se encontram algumas receitas, entre as quais a da Confiture d’oranges. Tudo em francês, língua dos pais de Marc Ferrez, Zépherin e Alexandrine Caroline Ferrez. Aliás, o pai era Zépherin de nascimento, mas à medida que se foi abrasileirando, passou por Zéphyrin até assinar Zeferino Ferrez.

Filho caçula do casal, o fotógrafo se manteria ligado à França por toda a vida, fosse durante a década em que lá permaneceu depois da morte dos pais, fosse em busca de novidades tecnológicas quando já profissional, ou nos cinco anos que, a partir de 1915, ficou entre Paris e Vichy, tentando se recuperar da perda da mulher, morta em 1914.

Ao afirmar que há tipos de notas variadas nos cadernos do Arquivo Nacional não significa dizer que se deixe de encontrar também aí listas de equipamentos ou fórmulas de métodos fotográficos. Técnicas ou indicações de materiais adequados à sua arte se refletem em todos os itens de seu arquivo, conservado pelo neto. Mas a tradição da cozinha francesa tinha seu peso e se apresenta nas notas cotidianas. Casado com a também francesa Marie Lefebvre desde 1875, ele certamente não deixava só a ela as tarefas domésticas. Ou, pelo menos, compartilhava os interesses – sugere o caderno, que inclui ainda receitas de brioche de batata (Brioche de pomme de terre), Oeuf mollet sur canapé, além de compota de melão e outras. E não são só pães e doces. Marc Ferrez sabia apreciar o Rhum e não tinha pena de pagar, por uma dose, valor equivalente a duas chapas para fotografia.

Mas vamos à geleia:

Geleia de laranja 

9 laranjas de casca fina e 2 limões

1. Cortar 6 laranjas em fatias finas com casca, retirando as sementes.
2. Retirar a casca das 3 outras e cortar a polpa bem fininha.
3. Acrescentar o suco dos 2 limões.
4. Deixar de molho em 2 litros de água durante 24 horas, depois ferver  até  reduzir pela metade, até mais ou menos 1 litro e ¼.
5. Acrescentar 2 quilos de açúcar e deixar reduzir meia hora.

Rende 4 potes de geleia.

Ferrez deixou de listar o açúcar nos ingredientes, mas ao acrescentá-lo no modo de fazer, foi generoso: 2 quilos, o que faz com que seja necessária apenas meia hora para dar o ponto da geleia. Antes disso, há que se embutir aí pelo menos duas horas ao pé do fogão até reduzir os 2 litros de água iniciais a 1¼.

Francesa, inglesa ou brasileira, a geleia de laranja não foge do básico: laranja, claro, açúcar e limão. O que muda são as proporções e o modo de preparo. Os ingleses, por exemplo, recomendam 6 minutos – 6 e não 5! – de fervura na segunda etapa de preparação de sua English marmelade. E, se não se usar uma colher de pau e tigela no tamanho certo, o sucesso não é garantido.

A receita que tenho me foi dada por uma vizinha, há muito tempo, mas não sei a origem, se estrangeira ou mesmo brasileira. Adoro seguir o ritual que se desenrola por 48 horas, pontuadas por ações delicadas e exigentes. Há nessa receita mais um requinte: manda que se juntem as sementes da laranja em um pedacinho de pano, que, amarrado com barbante, faz o buquê. Esse buquê deve ser fervido na água das laranjas. Quando espremido, solta uma substância gelatinosa, acrescentada à mistura, o que torna o processo ainda mais especial. É surpreendente ver o quanto há numa semente, normalmente desprezada.

Ao final, para se encher três potes pequenos, no máximo, ou quatro, se se fizer a receita de Marc Ferrez, é preciso cuidar para não perder um pingo da geleia. E depois reverenciá-la na sua translucidez e firmeza diamantinas, antes de juntá-la ao pão.

Rosto de Elvia Bezerra, coordenadora de Literatura do IMS, visto de perfil

Elvia Bezerra é pesquisadora de literatura brasileira e colaboradora no IMS.

Os mais de cem cadernos de escritores guardados no acervo de Literatura do Instituto Moreira Salles mostram o quanto esses itens, cada vez mais raros nos nossos dias, serviram no passado de laboratório de criação literária. Esta série em construção revela a singularidade desses documentos e a natureza de seus autores. Confira a coleção de posts elaborados a partir deste material cuidado e catalogado pelo IMS.

Veja toda a série