Uma fotografia de infância, uma carta, um singelo cartão-postal, um manuscrito ou as páginas de um diário. Qualquer lembrança guardada por um escritor, ou por familiares e amigos, pode ajudar a iluminar posteriormente sua obra. No caso de autores clássicos, um acervo constituído ganha ainda mais relevância na hora de manter viva e atraente uma produção importante, que já não conta com o próprio autor para renová-la. Este é o caso, por exemplo, da cearense Rachel de Queiroz (1910-2003), cuja obra começa a ser toda reeditada pela José Olympio com o lançamento de uma edição caprichada, em capa dura, de O Quinze, seu romance de estreia, publicado em 1930. Para esta 104ª edição, o acervo da escritora, sob a guarda do Instituto Moreira Salles desde 2006, foi fundamental. Dele saíram fotos e outras imagens inéditas, além de informações precisas que ajudaram a enriquecer uma cronologia comentada.
“O acervo foi vital na hora de checar datas, nomes, eliminar dúvidas”, conta Elvia Bezerra, coordenadora de Literatura do IMS e curadora de textos e imagens da edição, na qual assina também a cronologia, o prefácio e um glossário. “A Rachel teve sorte de ter duas arquivistas natas perto dela. A primeira foi a mãe, que recortava tudo o que saía dela e sobre ela e colava num álbum. Aí já temos um caminho bem encurtado, facilitado para a pesquisa. Depois da mãe ela também teve a Alba Frota, sua amiga de infância, que tinha um projeto de escrever uma biografia da escritora. Ela guardava tudo, anotava tudo. A coleção da Alba está dentro do arquivo da Rachel, que tem aproximadamente 8 mil documentos, entre fotos, recortes, manuscritos”.
Elisa Rosa, editora da José Olympio, reconhece que manter a obra de autores considerados clássicos ao alcance do leitor não é uma tarefa simples. “Não basta que o livro continue em catálogo, embora essa seja uma condição fundamental. O relançamento é, portanto, uma maneira de manter as edições relevantes e atraentes para os que já conhecem o livro, mas também uma forma de despertar o interesse de novos leitores”, diz ela, apontando também o papel importante desempenhado por um projeto gráfico especial como no caso de O Quinze, único dos títulos de Rachel que sairá em capa dura.
A editora também destaca os acervos como fonte importante para uma cronologia bem pesquisada, contextualização da obra, e para apresentar ainda um material mais “pessoal” ao leitor. “Cartas, fotos, recortes de jornais da época. No caso de O Quinze, foi graças a alguns acervos (família, IMS, Confraria dos Bibliófilos do Brasil, entre outros) que conseguimos um caderno com pérolas como a capa da primeira edição do livro e o primeiro anúncio dele. São curiosidades, mas são também registros históricos”.
Do acervo do IMS saíram, por exemplo, as fotos ainda inéditas de uma jovem Rachel remando no açude do sítio do Pici, onde ela morava e onde escreveu O Quinze, e dela ao lado de Alba – que morreu em 1967, no mesmo acidente de avião que matou o Marechal Castelo Branco. Também ilustram a edição o anúncio do lançamento do livro num jornal de Fortaleza, e uma das páginas do prelo da primeira edição do romance, com anotações de Alba. “Achei importante mostrar, porque o leitor pode comparar as mudanças que a autora fez depois”, diz Elvia, que também assinará a curadoria de textos e imagens dos próximos relançamentos da escritora.
Além da cronologia comentada, o romance, que desde a primeira edição foi reconhecido e aplaudido como um contundente retrato do sofrimento e êxodo dos nordestinos causados pela seca – o título é uma referência à grande seca que assolou a região em 1915 –, traz ainda um glossário que se mostra precioso na leitura. Curiosamente, no prefácio da primeira edição do livro, a autora, que ainda não completara 20 anos na época do lançamento, recusa a ideia de fazer um, dizendo que “é para livro consagrado, livro em terceira ou quarta edição. Num romaneco anônimo, editado em província, ele dá uma impressão terrível de presunção e pernosticismo”. Elvia, porém, observa que muitas das expressões regionais que aparecem no texto necessitam de explicação. “Esta já é a 104ª edição, uma obra consagrada, então um glossário já cabe”, diz ela, que contou com a ajuda de Katya de Moraes, da coordenação de literatura do IMS, na elaboração dele e também da cronologia.
As obras de Rachel de Queiroz – o próximo título a sair será As três Marias, em 2017 – não são as únicas, claro, a se beneficiarem da existência de um acervo. Outros arquivos abrigados no IMS, como os da poeta Ana Cristina Cesar e do escritor Paulo Mendes Campos, foram essenciais para edições recentes de livros destes autores. O arquivo de Ana C. serviu para cotejar edições, corrigir informações. No caso de Paulo Mendes Campos, o acervo, que chegou ao IMS em 2011, rendeu um livro inteiro, De um caderno cinzento: crônicas, aforismos e outras epifanias (Companhia das Letras, 2015), organizado por Elvia a partir de recortes de crônicas que estavam inéditas neste formato.
“O interessante no processo de seleção foi ver como ele trabalhou e retrabalhou a obra dele”, conta Elvia, que fez também o posfácio da edição. “Ele selecionou trechos de crônicas publicadas e os jogava em outras, de uma forma diferente. Dá para ver como se preocupou em selecionar o melhor para os livros. É uma seleção que ele mesmo tinha feito, organizado de alguma forma. No acervo tinha De um caderno cinzento, amarelo, de poesia…”
O acervo de Rachel de Queiroz também gerou um livro inédito, Mandacaru, com poemas que ela escreveu antes de O Quinze e que deixou propositalmente na gaveta durante toda a vida. Em 2010, ano do centenário de nascimento da autora, o IMS publicou a obra, que sobreviveu graças a Alba Frota, responsável pela preservação dos originais. “O objetivo ao publicar Mandacaru foi mostrar a importância dele na obra de Rachel, ele é a fermentação de O Quinze”, explica Elvia. “Ali ela já vinha tateando o tema da seca, do êxodo. Na primeira edição do romance, inclusive, há versos de Mandacaru, que depois saíram. Ela escreve os poemas porque quer colaborar com as ideias do modernismo, movimento que ecoou forte no Nordeste. Tinha essa pretensão e os escreve para mandar para ninguém menos que Mário de Andrade. Mas apesar de bem jovem ela já era inteligente e suficientemente crítica para não publicá-los”.
Elvia lembra, entretanto, que Rachel nunca destruiu os poemas. “Este também é um dado importante que se percebe quando trabalhamos com arquivos. Autores passam a vida dizendo que precisam dar um fim a algumas coisas, mas deixam arquivos organizados. Quem organiza não quer dar um fim, é uma contradição natural do escritor”.
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