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Alicerces do IMS – Poços de Caldas

12 de agosto de 2022
Diretores e conselheiros do Instituto Moreira Salles. Poços de Caldas, 8 de agosto de 1992. Em pé: Gabriel Jorge Ferreira, Antônio Fernando De Franceschi, Fernando Moreira Salles e João Moreira Salles. Sentados: Otto Lara Resende, Walther Moreira Salles, Antonio Candido, Francisco Iglésias, Jurandir Ferreira e Pérsio Arida. Arquivo Otto Lara Resende/ Acervo IMS.

Por serem íntimas, cartas se constituem documentos especiais – lembram advogados e arquivistas. Itens hoje fora de uso, costumam surpreender ao exibir traços desconhecidos de remetentes, assim como de destinatários, no tempo em que pegar de caneta e papel era a única forma de comunicação entre pessoas distantes umas das outras. Sem a publicação da correspondência de Rui Barbosa, por exemplo, quem saberia que o austero jurista se convertia, nas cartas, em marido apaixonado por sua Maria Augusta? Ou que Lúcio Costa descrevia cidades europeias com talento semelhante ao que aplicou em seus projetos arquitetônicos? Ou ainda que o jornalista e escritor Otto Lara Resende fez da amizade tema frequente em sua correspondência de mais de sete mil cartas?

Pelo Correio, Otto seria o noticiador de bastidores de criação da Casa de Cultura Poços de Caldas, que, neste 2022, completa 30 anos. Foi ele pego de surpresa quando o historiador mineiro Francisco Iglésias, em carta de 18 de junho de 1991, lhe confidenciou a suspeita de que o crítico literário Antonio Candido, um dos integrantes do conselho do IMS, do qual Iglésias e Otto também faziam parte, recusara o jeton de 320 mil cruzeiros oferecidos pela instituição para custear passagens, hospedagem e alimentação quando das reuniões que, naquele ano, se realizavam entre as sedes do antigo Unibanco, em São Paulo, e a de Poços. Ali, no terceiro andar do edifício da agência de Poços, Walther Moreira Salles tinha um pequeno apartamento, espécie de suíte com extensão de uma sala, onde se hospedava e fazia reuniões de trabalho.

“Então eu não devia ter recebido”, torturava-se Otto, em resposta à confidência de Iglésias, e justificava a angústia: “O que v. me diz sobre o AC me perturba”. E dizia assim porque havia pouco tempo, ele mesmo, Otto, tinha ido a Passo Fundo (RS) e doado à biblioteca local a ajuda de custo que lhe tinha sido oferecida por ocasião de um evento para o qual fora convidado. Não era diferente de Candido que, em 1990, ganhara o Prêmio Moinho Santista e doara o valor ao PT. Noblesse oblige.

Walther Moreira Salles, Pedro Moreira Salles, Antônio Fernando de Franceschi, Otto Lara Resende, Fernando Moreira Salles, Pérsio Arida, Antonio Candido e Francisco Iglésias em almoço. Arquivo Otto Lara Resende/ Acervo IMS.

 

Gestos de nobreza revelados nas cartas não aparecem nas fotos dos membros do Conselho, guardadas por Otto em seu arquivo: Walther Moreira Salles, o fundador, Pedro Moreira Salles, um dos quatro filhos, Antonio Candido, Francisco Iglésias, Otto Lara Resende, o economista Pérsio Arida, o escritor Jurandir Ferreira e o poeta Antonio Fernando de Franceschi, futuro superintendente do IMS. Naquele 1991, quatro anos depois da criação do Instituto de Artes Moreira Salles, que no mesmo ano aboliria o “Artes” do nome e incorporaria a Casa de Cultura Poços de Caldas, ou IMS-Poços, como hoje é chamada, o conselho consultivo da instituição movimentava-se entre a capital paulista e a cidade mineira para ajustar objetivos e definir programas. Preparava-se o Chalé Christiano Osório, adquirido em 1989, na rua Teresópolis 90, para sediar o aniversariante de hoje: o primeiro centro cultural Moreira Salles.

A sobriedade dos ambientes retratados nas fotos, possivelmente feitas nas sedes do Unibanco, em São Paulo, ou no apartamento de Walther Moreira Salles, em Poços, não exclui expressões de entusiasmo dos visitantes. Tudo com discrição, como convém em encontros dessa natureza, mas, estando presente Otto Lara Resende, conhecido como um dos maiores papos de sua geração, devem ter sido muitos os momentos de brilho e graça, certamente temperados pelo humor e inteligência de Antonio Candido e até mesmo de Francisco Iglésias, tímido por natureza, mas especial imitador de tipos, como contava o próprio Candido.

É ainda Otto que, em carta a Dalton Trevisan de 13 de agosto de 1992, cinco dias depois da inauguração, comenta:

Estive em SP, depois Poços de Caldas, depois SP de novo. Viagem divertida, na companhia do Ant Candido/Gilda, do Iglésias ― e só estes bastam para fazer uma viagem feliz. Me esqueci da rotina pesada do Rio, que me esmaga. Vi muita gente. Lá em Poços estavam também o Mindlin e o casal Luiz Schwarcz.

Referia-se ao empresário e bibliófilo José Mindlin, ao escritor e editor Luiz Schwarcz e sua mulher, a historiadora Lilia Moritz Schwarcz, cúmplices da empreitada que apenas começava. O IMS teria sedes ainda em São Paulo (antes do atual prédio do IMS Paulista), em Belo Horizonte, hoje extinta, e na antiga residência dos Moreira Salles, na Gávea, no Rio de Janeiro, transformada em Centro Cultural e onde eu mesma trabalhei.

Otto Lara Resende, Fernando Moreira Salles, Pérsio Arida e Walther Moreira Salles. Arquivo Otto Lara Resende/ Acervo IMS

 

Cada um desses centros representou um novo começo, e não foi diferente a sensação que experimentei em dezembro de 2009, quando, ao assumir a coordenadoria de Literatura, deparei com os 230m2 da Reserva Técnica Literária, construção anexa à Casa da Gávea. O branco estonteante do primeiro andar, novinho em folha, em pouco tempo seria povoado pelo acervo de Iconografia e seus funcionários, assim como de parte da Fotografia. No segundo andar, onde me instalei com uma equipe de cinco funcionários, ligávamos os computadores recém-comprados, enquanto operários puxavam fios, fixavam armários e retocavam paredes. Não demorou que chegassem os caminhões das transportadoras, trazendo os acervos de Literatura com seus mais de 150 mil itens, biblioteca de aproximadamente 50 mil livros, dando sentido ao branco profundo daquele segundo salão. Vindos de São Paulo, os acervos literários se centralizavam no Rio de Janeiro. Começava uma nova era do IMS, sob a gestão de Flávio Pinheiro, superintendente de 2008 ao final de agosto de 2020.

O IMS Poços, hoje sob a direção de Haroldo Gessoni, naturalmente, integrou-se à programação intensa desses anos trepidantes, durante os quais foram erguidos quatro extraordinários pilares de representação da cultura brasileira, com material extraído dos acervos: o Departamento de Fotografia, por meio de exposições, catálogos e debates, deu ao fotojornalismo o lugar de prestígio que merece; o Departamento de Iconografia investiu na preservação e divulgação de desenhistas como J. Carlos, Millôr Fernandes e, recentemente, Claudius, ampliando a compreensão da expressão popular na imprensa; o Departamento de Música, com o excepcional site da Discografia Brasileira, além de outros como o de Pixinguinha, faz assonância às artes visuais; e a crônica brasileira, por natureza ligada aos três, fixou-se no Portal a ela destinado, criado pelo Departamento de Literatura. Isso apenas para lembrar a solidez dos quatro pilares, sem mencionar tudo o que derivou deles, nem as realizações que os tangenciaram.

Voltando à foto do dia 8 de agosto de 1992, dia da inauguração do IMS Poços, constata-se que três daqueles entusiasmados senhores, hoje em outra galáxia, têm seus arquivos sob a guarda do IMS: Otto Lara Resende, dono do arquivo-fundador do Departamento de Literatura, Jurandir Ferreira e Francisco Iglésias.

A semente do IMS Poços é fecunda e explodiu na avenida Paulista 2424, no belo prédio do IMS Paulista, construído e inaugurado durante a gestão Flávio Pinheiro. São agora três sedes – Poços, Rio e São Paulo, começando uma nova etapa de vida com a direção de Marcelo Araújo, João Fernandes e Jânio Gomes desde o segundo semestre de 2020.

Elvia Bezerra é pesquisadora de literatura brasileira e colaboradora no IMS.