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Amizade em claro-escuro

27 de fevereiro de 2020
Detalhe de daguerreótipo de Emily Dickinson, c. 1847

 

No dia 16 de abril de 1862, o colunista do jornal norte-americano Atlantic Monthly Thomas Wentworth Higginson recebeu uma carta sem assinatura. O texto era excêntrico: havia pouca pontuação e todos os substantivos iniciavam-se por caixa alta, regra do inglês arcaico e do alemão moderno. Higginson só descobriu a remetente ao abrir um envelope menor, anexo ao documento principal. “Emily Dickinson”, dizia o nome escrito a lápis em um cartão. Hoje, os iniciados na obra da poeta teriam descoberto a autora com facilidade. Bastaria olhar os reincidentes travessões ao longo do texto. De toda forma, ali se iniciava a amizade dos escritores, que só se encontrariam pessoalmente duas vezes.

A correspondência entre os amigos está reunida em um livro que pertenceu a Maria Julieta Drummond de Andrade, filha do célebre poeta de Itabira. Emily Dickinson – Algumas cartas (Editora NOA NOA, 1983) faz parte da biblioteca de Maria Julieta no Instituto Moreira Salles. Além das cartas da poeta americana, as 31 páginas do livro, traduzido por Rosaura Eichenberg, trazem relatos de Higginson sobre a amizade entre os dois.

Na primeira epístola, Emily Dickinson reage ao artigo “Carta para um jovem colaborador”, em que Higginson aconselha e encoraja novos escritores. Com a timidez de quem assina o nome a lápis, a poeta pede ao colunista que avalie quatro poemas de sua autoria. “O senhor anda muito ocupado para dizer se meu verso tem vida?”, ela pergunta. De imediato, Higginson espanta-se com o talento da jovem. “A impressão de um gênio poético totalmente novo e original foi tão clara na minha mente por ocasião da primeira leitura quanto o é neste momento, depois de meio século”, ele comenta no livro. Aliás, Higginson reconhece não ter sido, em nenhum momento, um “preceptor” da jovem.

Emily Dickinson nasceu no dia 10 de dezembro de 1830 em Amherst, pequena cidade do estado americano de Massachusetts. Oriunda de uma família tradicional, recebeu uma educação incomum para mulheres do século XIX. Esteve muito à frente de sua época. “Deus me livre do que eles chamam de tarefas domésticas!”, escreveu certa vez à amiga Abiah Root. Com o passar dos anos, tornou-se uma figura enigmática. Viveu reclusa na fazenda da família e poucas vezes chegou a sair de sua cidade. Ao mesmo tempo, a poética desenvolvida pela autora abarcou os grandes temas da existência humana. Dickinson escreveu com raro engenho: alcançou um lugar na eternidade ao exaurir imagens cotidianas e chegar a domínios abstratos.

Se Thomas Wentworth Higginson é menos conhecido mundialmente, sua luta política é relevante para a história americana. Nascido em 1823 na cidade de Cambridge, também em Massachusetts, o autor de A vida no exército em um regimento negro (1870) era abolicionista e defensor dos direitos das mulheres.

Dez dias após a primeira missiva, uma segunda carta de Emily Dickinson revela suas principais influências. “Pergunta-me sobre minhas leituras. Para a poesia, tenho Keats e Mr. e Mrs. Browning”, cita a autora. Com efeito, o pai da poeta, Edward Dickinson, comprava muitos livros para os três filhos, mas tinha medo de que se afastassem da religião. “Todos são religiosos, exceto eu, e dirigem-se, todas as manhãs, a um eclipse que eles chamam de Pai”, ela explica. Desta vez a remetente assina o nome sem timidez e escreve uma saudação mais calorosa. “Sua amiga, E. Dickinson”.

Meses depois Thomas Higginson pede um retrato à moça, após ter recebido mais poemas. No mês seguinte, para aguçar ainda mais a curiosidade do destinatário, Emily Dickinson diz não ter nenhuma fotografia e prefere elaborar uma autodescrição. “Sou pequena como a corruíra e meu cabelo é atrevido como a casca da castanha; meus olhos, como o xerez que o convidado deixa no fundo do copo”, escreve.

 

"Margareta", fotografia de Otto Stupakoff. Roma, 1969 (Acervo IMS)

 

O livro traz ainda a memória de Higginson dos tempos em que ingressou na Guerra Civil como voluntário. Emily Dickinson escreve um poema de dois versos ao amigo: “Os melhores ganhos devem passar pelo teste da perda/Para que sejam ganhos.” De fato, o abolicionista teve de enfrentar um desafio. “No verão de 1863 fui ferido e estive no hospital por algum tempo, durante o qual recebi esta carta a lápis, escrita também de uma espécie de hospital, só que para olhos fracos”, lembra Higginson.

A poeta fez uma de suas únicas viagens para consultar um oftalmologista em Boston. No leito do hospital, escreve ao amigo três versos com suas marcas registradas. “As únicas notícias que tenho/São boletins o dia todo/Da imortalidade.” Ao invocar uma de suas obsessões, a imortalidade, a poeta sugere o impossível. Emily Dickinson vive a plenitude de versos ensolarados, mas a tragédia da existência lança algo como o chiaroscuro de Caravaggio ao poema. Eis o cenário de um campo de batalha.

Nesta altura a correspondência torna-se rarefeita. A artista volta a falar em imortalidade quando pensa sobre o relacionamento epistolar. “Uma carta sempre me dá a sensação de imortalidade, porque é a mente sozinha sem o amigo corpóreo”, reflete.

Após oito anos, em 16 de agosto de 1870, os amigos encontram-se pela primeira vez, na casa da família Dickinson, uma típica mansão de tijolos do interior dos Estados Unidos. “Ouvi no saguão um passo leve e rápido, como o de uma criança, e, quase sem fazer barulho, deslizou para dentro da sala uma pessoa pequena, tímida e simples, a face sem nenhum traço de beleza, mas com os olhos como ela própria dissera”, descreve o narrador.

Na sequência de um incômodo silêncio, a anfitriã dispara citações aforísticas. “Será esquecimento ou absorção, quando as coisas somem de nossas mentes?”, “A verdade é algo tão raro, é maravilhoso contá-la”. Ao perceber o monocórdio, recolhe-se em sua timidez. “Perdoe-me se estou assustada; nunca vejo estranhos e mal sei o que dizer”, confessa. Higginson sabia que desequilibrava o ambiente, mas trazer a amiga para o cotidiano era uma impossibilidade. Na obra, o escritor lembra de alguns convites para ir a Amherst, já que o contrário também não era possível: o pai estava “acostumado” a ter a filha por perto.

Emily Dickinson não se despediu sem elaborar um pensamento que caberia em um poema. “Diga daqui a muito tempo; assim fica mais próximo. Algum tempo não é tempo nenhum”, a poeta, como sempre, desdobra a lógica, quando Higginson promete voltar à casa de Amherst.

O segundo encontro entre os amigos não é relatado em Emily Dickinson – Algumas cartas, pois Higginson não encontrara notas da ocasião. A poeta morreu no dia 15 de maio de 1886, em decorrência de uma nefrite. Quatro anos depois de sua morte, coube ao fiel amigo editar seus dois primeiros livros, ao lado de Mabel Loomis Todd, amante do irmão da autora. Ainda hoje Amherst não é uma cidade grande. De acordo com o censo americano de 2010, tem 37.819 habitantes. A paisagem bucólica divide espaço com universidades e a fama de ser a cidade natal de Emily Dickinson foi materializada na construção, em 2003, de um museu em homenagem à poeta.

 

* Gustavo Zeitel é jornalista e estagiário da coordenadoria de Literatura do IMS