O caderno de Ana Cristina Cesar intitulado Os oito pronomes pessoais é o embrião mais perfeito da futura poeta, editora e crítica literária. Foi concebido para homenagear o pai, que fazia aniversário em 1966. Ana, então com 14 anos, preparou-lhe uma edição de poemas escritos quando menina, acompanhados de críticas, com índice, colofão e capa ilustrada, em edição feita inteiramente por ela.
O mais estimulante, talvez, do conteúdo do caderno-livrinho, catalogado sob o número 055758, e já objeto de estudo em "Caderno de editora", são as críticas que ladeiam cada um dos oito poemas. Sob o pseudônimo de Abrocado R. Mido, Ana é a comentarista implacável que assina também o prefácio, com as iniciais A.R.M.
Impressiona o julgamento severo da adolescente ao rever suas composições infantis. Diante de, por exemplo, “Clarão do deserto”, o poema de abertura, escrito em 1961. Abrocado, que significa “pequeno prego” e vem do verbo abrocar, ou brocar, com sentido de perfurar com broca, é impiedoso com a poeta de oito anos de idade, embora possa também ser divertido, como nos comentários sobre “Melão de esperança”.
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“Em ‘Versos malucos’ é evidente a megalomania da autora”, sintetiza Abrocado, que, passando para “Balada da madrugada”, invoca, divertido: “Modéstia, vinde... habitai nossos corações...”. O último comentário do livro é uma brincadeira, não se sabe se com base em fato real ou imaginário. O que se lê é que o crítico não está à vontade para se expressar porque a letra “o” da máquina de escrever quebrou e ele a substitui por “x”, arrematando seus comentários: “Ditx istx, nãx pxderemxs cxntinuar”, justifica. O encerramento da edição conta com dedicatória manuscrita e amorosa ao “Paitusco” e as devidas desculpas pelas falhas editoriais.
Além de releitura crítica, Ana Cristina Cesar é autora, vamos dizer, do projeto gráfico, que inclui capa de fundo preto com desenhos de flores laranja, assim como das informações de praxe da Editora Problemas Universais, criada por ela para lançar sua produção artesanal.
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Germinam em Os oito pronomes pessoais a futura poeta de Cenas de abril, que, no poema “Recuperação da adolescência”, diz: “é sempre mais difícil/ ancorar um navio no espaço”; a autora e editora de Luvas de pelica, de 1980, edição preparada por ela, e a crítica literária que teria atuação notável em periódicos cariocas importantes na década de 1970.
Versos, como já se disse aqui, ela fazia desde os sete anos de idade, publicados por iniciativa de Lúcia Benedetti na Tribuna da Imprensa, ou divulgados no Jornal da Juventude Infantil, fundado pela própria Ana Cristina no Colégio Bennett, onde cursou ensinos fundamental e médio. Incluída na antologia 26 poetas hoje, de 1975, organizada por Heloísa Buarque de Hollanda, para quem Ana “fez seguramente a melhor e a mais original literatura produzida dos anos 1970”, tornou-se conhecida por uma poesia intimista marcada pelo tom coloquial. Louvada por sua “ousadia e originalidade”, nas palavras de Armando Freitas Filho, um dos maiores conhecedores de sua obra, Ana Cristina Cesar mudou o panorama da poesia daquela década.
A vocação para editora foi posta à prova quando ela estava na Inglaterra cursando mestrado na Universidade de Essex. Tinha lançado seus dois primeiros livros, Cenas de abril e Correspondência completa, em setembro de 1979, no Rio de Janeiro, e, naquele mesmo mês, embarcara para a cidade inglesa de Colchester. Um pouco antes de redigir a tese, que lhe renderia o título de Master of Arts em Theory and Practice of Literary Translation (with distinction), não esperou voltar ao Brasil para se lançar ao projeto de edição de Luvas de pelica, seu terceiro livro. É aí que, com faro editorial, ela vai a Londres e descobre “lojas diabólicas”, onde folheia enorme quantidade de tipos de papel. Depois do fascinante tour no comércio londrino, ela aproveitou uma máquina offset que havia na garagem do irmão de seu namorado, Christopher Rudd, em Yorkshire, e ali imprimiu os exemplares do Luvas, que seria lançado no Brasil no ano seguinte, e em que mistura poesia, prosa, diário, carta e anotações.
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“Quando você morrer os caderninhos vão todos para a vitrine da exposição póstuma. Relíquias”, escreve no poema de abertura do livro. Errou. Errou Ana Cristina, porque seus cadernos são dinâmicos. Acertou a poeta, porque os poetas não têm compromisso com a verdade. Os 24 cadernos que deixou, e que estão sob a guarda do IMS, vêm servindo de fonte indispensável para o estabelecimento de texto de sua obra, como se vê na edição de Poética, em que Armando Freitas Filho reuniu, pela primeira vez, toda a produção da amiga.
A vocação crítica de Abrocado R. Mido de Os oito pronomes pessoais desenvolve-se plenamente na década de 1970, quando Ana Cristina passa a colaborar no semanário Opinião, jornal de oposição ao regime militar, naqueles anos sob o comando dos generais Emílio Garrastazu Médici (1969-1974) e Ernesto Geisel (1974-1979). Dessa época, ficaram famosos artigos que assinou nesse periódico, como “De suspensório a dentadura”, além de outros publicados no Jornal do Brasil ou na revista Colóquio.
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Em 1979, quando saía Geisel e entrava o general João Baptista de Figueiredo (1979-1985), e com isso se iniciava a abertura política, Ana Cristina voltou à Inglaterra. Ao optar por fazer a tradução anotada do conto “Bliss”, de Katherine Mansfield, como tese de doutorado em Essex, ela precisou assumir critérios que, mais uma vez, dependiam de espírito crítico. O resultado está em The Annotated “Bliss” – or Passion and Technique: A Translation of Katherine Mansfield’s “Bliss” into Portuguese, incluído no volume Crítica e tradução, publicado pelo IMS em parceria com a editora Ática.
Ana Cristina não ficou só em Mansfield. Dentre outros poetas, traduziria poemas de Emily Dickinson, e mostra-se madura no artigo “Bastidores da tradução”, sobre duas antologias, uma traduzida por Manuel Bandeira e outra por Augusto de Campos. O tempo de Abrocado R. Mido ia longe, mas a agudeza da observação se aprimorava. E as três Anas do futuro se mostravam palpitantes em Os oito pronomes pessoais.
Elvia Bezerra é pesquisadora de literatura brasileira e colaboradora no IMS.
Os mais de cem cadernos de escritores guardados no acervo de Literatura do Instituto Moreira Salles mostram o quanto esses itens, cada vez mais raros nos nossos dias, serviram no passado de laboratório de criação literária. Esta série em construção revela a singularidade desses documentos e a natureza de seus autores. Confira a coleção de posts elaborados a partir deste material cuidado e catalogado pelo IMS.