“Eu era rosada, careca e de olhos azuis”, reconhecia-se Ana Cristina Cesar na autobiografia Memórias de uma criança, escrita em 1963 e “publicada” com o selo da Editora Problemas Universais, em um caderno hoje registrado no IMS sob o número 055752.
Aos onze anos de idade ela terminava o curso primário no Colégio Bennett e se propôs a narrar sua trajetória até ali. Não ficou indiferente ao ciclo que se fechava para dar início ao seguinte, no Colégio Santo Amaro, onde faria o então curso ginasial, hoje ensino fundamental. Na capa do caderno de memórias desenhou um balão, o que deixa de ser uma imagem puramente infantil para representar o voo daquela primeira década de vida.
Supõe-se que, no ano em que deu início à redação, Ana tinha aprendido o “porém”, mas ainda não dominava perfeitamente o emprego da conjunção. Conta, por exemplo, que viveu um período na casa da avó materna Maria Luíza. “Porém”, adverte, sem razão de ser, a avó morava na rua Mariz e Barros 95/402, em Niterói. Nas mesmas circunstâncias, mas sem “porém”, orgulha-se de ter dado os primeiros passos aos dez meses e meio.
O curioso é que, assim como foi mostrado aqui o caráter embrionário do Caderno de crítica, no que diz respeito aos múltiplos talentos de Ana Cristina, plenamente desenvolvidos no futuro, neste caderno 055752 vê-se igualmente germinar a autora de Cenas de abril, livro de 1979, em que poesia e prosa se confundem e em cujo poema “Na outra noite do meio-fio” lê-se: “Eu era menina e já escrevia memórias, envelhecida. O tempo se fazia ao contrário”.
Verdade. Pois era a menina de onze anos de idade que se colocava como memorialista, usando verbos como recordar e empregando o mais-que-perfeito simples [chegara] no lugar do composto e coloquial tinha chegado. Está claro que, no futuro, ela abandonaria qualquer artificialidade – prova o coloquialismo de Cenas de abril.
Quem sabe a constatação no verso “O tempo se fazia ao contrário”, que levou Eucanaã Ferraz a inverter a ordem cronológica na extraordinária fotobiografia Inconfissões, terá sido consequência de uma releitura dos cadernos de infância naquele mesmo ano de 1979 do lançamento do Cenas. Afinal, a penúltima composição do livro, intitulada “Jornal íntimo”, é de junho, e, em setembro, ela lançava o livro durante a inauguração da Livraria Noa Noa, com recital de poesia de Bernardo Vilhena, Charles Peixoto, Cahacal e Ronaldo Santos, integrantes do grupo Nuvem Cigana.
Dias depois, viajaria para a Universidade de Essex, na Inglaterra, inicialmente para cursar Sociologia da Literatura, que logo trocaria pelo de Teoria e Prática da Tradução Literária.
Se foi mesmo a releitura do caderno que inspirou o poema “Na outra noite no meio-fio”, ela terá comprovado nessa produção da infância o gosto do registro memorialístico, “porém” cheio do artificialismo próprio a quem ainda não encontrou seu caminho. Nem podia. Era cedo demais.
É divertido observar a perspectiva infantil da autora sobre uma fase ainda anterior da sua meninice. Do alto de seus onze anos ela conta, por exemplo, que aos seis meses, em 23 de dezembro de 1952, dia do aniversário da mãe, caiu da cadeira e, como consequência, quebrou o braço: “Como ainda não escrevia, não me importei” – desdenha do que deve ter sido preocupação para a família e ficciona: “Orei pela primeira vez. Papá do céu, bligado, Jesus, amém”.
É capaz, ainda, de avaliar o quanto foi feliz no ano de 1958, quando não passava dos seis anos de idade. E aqui, mais um vez, constata-se o valor que atribuía ao encerramento dos ciclos: o feliz 1958 marcou a conclusão do jardim da infância; em 1963, ano das Memórias já mencionado aqui, concluía o curso primário.
Assim como há originalidade e graça na observação sobre o acidente de fratura do braço, há também indícios de uma atitude de “apaixonada escuta”, para usar a expressão de Manuel Bandeira. Ana Cristina nunca esqueceria a professora Silvia Leite Pinto. Primeiro por causa do nome, escreve ela nas Memórias: era atenta ao som das palavras e a suas combinações. Depois, porque na hora do recreio a mestra sempre dizia: “Vamos fazer pipi”. O que não se entende é por que, também no recreio, ela, loura e de olhos claros, fazia sempre o papel de bruxa quando se juntava às colegas para representar contos de fadas. [pág. 15]
Nem sempre a memorialista está segura em relação a datas. Significa que redigia sem recorrer à mãe, o que garante a autenticidade da obra. Em determinado momento, ela se refere à Seção Poetas Mirim, do Suplemento da Tribuna da Imprensa, onde, por iniciativa da escritora e teatróloga Lúcia Benedetti, foram publicados poemas seus. O nome da seção, conforme se vê na edição do jornal de 14 de novembro de 1959, é, na verdade, “Poetisas de Vestidos Curtos” e não “Poetas Mirim”.
De um modo ou de outro, fica-se sabendo dos preparativos para a matéria, com a visita do enviado da Tribuna: “Um fotógrafo veio aqui em casa, tirou uma fotografia minha e do Flávio”. O resultado está na foto publicada na reportagem: na primeira, uma Ana Cristina compenetrada, posa. Na segunda, o clique a pega em atividade, mais natural, sob o olhar curioso do irmão Flávio. A apresentação de Lúcia Benedetti, mãe da hoje carnavalesca Rosa Magalhães, é consagradora para uma menina de 7 anos de idade.
De modo geral, o que chama atenção nos cadernos de ACC é a coerência entre o que ela esboçava na infância, por meio da expressão escrita e visual, e o que realizaria na vida adulta. Contraditoriamente, a felicidade, pode-se dizer assim, expressa nos cadernos de menina, não seguiu seu curso até a juventude. Tão dissonante foi a transição entre fases da vida, que Ana sequer pôde chegar à maturidade: pôs fim à vida em 29 de outubro de 1983, aos 31 anos de idade.
Ao longo de sua fulgurante existência buscou interlocutor na poesia, na correspondência e nos depoimentos, o que levou Heloisa Buarque de Hollanda a resumir, no artigo que escreveu para a edição da obra completa da amiga: “Sem solução de continuidade, diário, correspondência e poesia fundem-se na vida e na obra de Ana C.”
Elvia Bezerra é pesquisadora de literatura brasileira e colaboradora no IMS.
Os mais de cem cadernos de escritores guardados no acervo de Literatura do Instituto Moreira Salles mostram o quanto esses itens, cada vez mais raros nos nossos dias, serviram no passado de laboratório de criação literária. Esta série em construção revela a singularidade desses documentos e a natureza de seus autores. Confira a coleção de posts elaborados a partir deste material cuidado e catalogado pelo IMS.