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Caderno de ‘O braço direito’: Otto Lara Resende

15 de setembro de 2020

“Devia ser proibido escrever romance antes dos 50 anos”, registra Otto Lara Resende em um de seus cadernos. Em 1989, aos 67 anos de idade, trabalhava na quarta versão de O braço direito, cuja primeira edição, publicada pela Editora do Autor, em 1963, lhe dera o Prêmio Lima Barreto, instituído pela prestigiosa Livraria São José, do Rio de Janeiro.

Ao preparar mais essa reedição, achou que ainda precisava fazer cortes, eliminar personagens, mudar a ordem de capítulos, alterar o ritmo da narrativa. Para isso devia recorrer às centenas de pedacinhos de papel com notas das intervenções que julgava necessárias. Deu-se conta de que o trabalho era mais penoso e longo do que imaginara. Sofria. Se o livro fora bem aceito desde o começo, e se a revisão lhe causava tanto tormento, por que, então, prosseguia? “Por uma única razão: não consigo não fazer. [...] Tenho de ir até o fim, mesmo com a certeza prévia de que vou alcançar um resultado pífio”, escreve.

Certeza prévia sem fundamento – já mostravam as três edições de O braço direito, mas justificável, se considerarmos a incessante angústia do criador. O caderno de capa xadrez branco e preto, datado de 1989 e registrado no IMS sob o número 030617, não deixa dúvida quanto à integridade do sofrimento de Otto, impedido de olhar para trás e ver a trajetória de sucesso do romance: cinco anos depois de ter sido publicado no Brasil, a editora inglesa Andre Deutsch, a mesma que apresentara Philip Roth e John Updike à Inglaterra, lançou O braço direito com o título The Inspector of Orphans. Em 1971 saiu, no Brasil, a terceira edição da obra pela Editora Sabiá, e exatos vinte anos depois, a que ele preparava agora, a quarta, pelo Círculo do Livro.

O começo de tudo está numa folha de papel datada de 19 de março de 1957, e revela o momento em que ele, logo depois de jantar, tem uma “inspiração autêntica”, seguida da certeza absoluta de que escreverá o romance. A estrutura vem-lhe de imediato, o título também: Os asilados, e refletiria a atmosfera do Asilo São Francisco, que ele conhecia em São João del Rei, sua cidade natal.

A anotação foi escrita um mês antes de, a convite do Itamaraty, ele embarcar com a família para Bruxelas, a Bruxa, como chamava. O salário era baixo, mas a experiência o seduzia e ele aceitou ser “adido e mal pago”, dizia, como bom frasista que era. Levava a ideia do romance na cabeça e na folha de papel. A partir daí, começaria a tortura da criação, que não sairia com o título de Os asilados, como pensou inicialmente, mas sim de O braço direito.

Em 21 de junho de 1957, pouco depois de se instalar na capital belga, ele escreveu a Hélio Pellegrino. “Quem sabe lhe direi que estou, afinal, escrevendo um romance, que certamente não passará da pág. 27 e você me concitará a escrevê-lo até o fim e me dirá, a meu pedido, qual o método mais moderno e eficiente para educar a vontade”.

Otto trabalhou em O braço direito de 1957 a 1963, quando o lançou, com mais de duzentas páginas. Ambientada em um casarão colonial, sede do Asilo dos Órfãos da Misericórdia, na cidade fictícia de Lagedo, em Minas Gerais, a narrativa é conduzida pela voz do zelador, personagem que, na sua pequenez, exigiu do autor grande talento para sair de si e retratar miudezas e injustiças, ocultas ou gritantes em ambiente marcado pelas mais diversas contradições humanas.

Vê-se que Otto nunca dera a construção por terminada: “Hoje, segunda-feira, 12, foi um dia passado na luta, no atoleiro e no desânimo”, escreve ele no caderno xadrez, o que me faz lembrar uma carta de Flaubert à sua amante Louise Colet. Ali o romancista francês vai contando o processo de criação de Madame Bovary, romance que começou a escrever em setembro de 1851 e terminou em abril de 1856: “Semana ruim, o trabalho não andou”, queixava-se, antes de descrever a cena em que Emma Bovary, em um baile, mais que encantada, sente arrepios ao experimentar o frio do champanhe na boca. Momento de descoberta de um prazer que anunciaria muitos outros.

Não importa aqui o lugar que os dois romancistas ocupam na literatura, nem se pretende estabelecer comparação. Mas um aspecto comum a ambos precisa ser destacado, independentemente de valor, talento, sucesso, e outros: a obsessiva busca da palavra exata, da expressão enxuta, da construção perfeita. Arrisco-me a dizer que, se Otto leu a afirmação de Flaubert em carta a Louise Colet de setembro de 1852, que transcrevo a seguir, terá concordado, com entusiasmo: “Uma frase realmente boa em prosa deveria ser como um bom verso na poesia, alguma coisa que você não pode mudar, e igualmente rítmico e sonoro”. Não era outro efeito que o escritor mineiro buscava nas exaustivas revisões que fez de sua obra.

Na página 6 do caderno lê-se a intenção do autor de transformar padre Emílio em um tio. Logo em seguida, achou que devia eliminar a personagem de vez. Deixou para fazer “a expulsão” do padre depois que acabasse de datilografar o livro todo, e mal a edição foi lançada, em 1991, começou todo o trabalho de reescrita para uma futura edição, mas morto em 28 de dezembro de 1992, não pôde concluí-la. Coube à escritora Ana Miranda incorporar as alterações desejadas por ele na quinta edição, lançada em 1993. Constata-se aí que o padre Emílio está presente na terceira parte do livro. Aparece em um sonho e em um pesadelo, além de fazer ressoar a frase: “Todo dia é dia da cruz”. Penoso.

Ao se propor a “apreender a atmosfera religiosa e católica das primeiras três ou quatro décadas deste século XX” em narrativa complexa como é a do romance, Otto mais que duplicava a ansiedade de que era tomado quando se dedicava ao conto. Nesse gênero, publicara O lado humano, em 1952, Boca do inferno, em 1957, que receberia, já no século XXI, edição com estudo consagrador de Augusto Massi, e, em 1962, O retrato na gaveta.

Assim como no romance, não padeceu sozinho na produção de contos e das centenas de artigos publicados nos mais importantes jornais do país. São 2.580 recortes de jornal conservados em seu arquivo, além de mais de mil textos de sua autoria, em manuscrito ou  datiloscrito. No suor de produção diária, contou com a companhia de seus pares. O sofrimento da criação não poupou nem mesmo a quem se dedicou exclusivamente à crônica, como Rubem Braga, fraterno amigo. Em artigo intitulado “Dores da criação” publicado recentemente no Portal da Crônica Brasileira, o também cronista Humberto Werneck oferece uma amostragem de crônicas sobre a dor de escrever. Em “Tenho pena da mulher...” Paulo Mendes Campos defende que “há dois polos em que oscilam os que escrevem: preguiça e força de vontade. E, se for preguiça, não é exatamente um defeito. A preguiça está entranhada em todos os que escrevem frases”.

Tenho dúvida se Otto concordaria com a afirmação. Tenho dúvida. Desconfio que a obsessão pela expressão ideal o impulsionava a corrigir sem trégua, e certamente o processo o castigava com a exaustão, mas não deixava espaço para a preguiça.

“Escrever é um ofício sórdido”, surpreende Rachel de Queiroz na crônica “Não escrevam”, também indicada por Werneck: “Ponho minha alma, meus sonhos, meus afetos numa folha de papel que será vendida a quinhentos réis – e isso porque subiu o preço dos jornais. Já vendi muito retalho da minha alma apenas por um tostão”, desabafa a cronista da lendária “Última Página” da revista O Cruzeiro.

“Poucos romances vasculharam tão profundamente nossa formação católica e os fundamentos mineiros da brasilidade”, escreveu o romancista Alberto Mussa, por ocasião do relançamento de O braço direito, em 1993. O cético Otto talvez tivesse gostado de ler o texto de Antonio Candido na quarta capa desse livro “poderoso e estranho”, ressalta o crítico, em que a arte de Otto Lara Resende “consistiu em elaborar uma voz narrativa destacada do autor”. O que é, sem dúvida, prova de muito talento.

 

Rosto de Elvia Bezerra, coordenadora de Literatura do IMS, visto de perfil

Elvia Bezerra é pesquisadora de literatura brasileira e colaboradora no IMS.

Os mais de cem cadernos de escritores guardados no acervo de Literatura do Instituto Moreira Salles mostram o quanto esses itens, cada vez mais raros nos nossos dias, serviram no passado de laboratório de criação literária. Esta série em construção revela a singularidade desses documentos e a natureza de seus autores. Confira a coleção de posts elaborados a partir deste material cuidado e catalogado pelo IMS.

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