As 370 páginas datilografadas de Solo de clarineta, originais das memórias de Erico Verissimo conservadas em seu acervo no IMS, têm origem no caderno registrado, também no IMS, sob o número 067268. Aí se encontram as notas do autor, feitas sob a emoção enquanto percorre, com sua mulher Mafalda, algumas cidades da Europa, em 1966.
Solo de clarineta seria publicado em dois volumes. Ao primeiro, lançado em 1973, seguiu-se o segundo, de 1976, um ano depois da morte do escritor e, por isso mesmo, incompleto, em edição coordenada por Flávio Loureiro Chaves, de acordo com indicações deixadas pelo autor.
Apesar de, nesse livro, Erico afirmar que nunca manteve diário de viagem, encontra-se, entre seus papéis, o robusto caderno de relatos, datado de 1966, preenchido com letra irregular, dando mesmo a impressão do ritmo apressado e circunstancial em que foram feitos os registros. Talvez considerasse diário de verdade aquele dotado de caráter literário, como o Diário íntimo do suíço Amiel que, não sendo de viagem, nem escrito com objetivo de ser divulgado, tem a qualidade literária que lhe garantiram sucesso em publicação póstuma.
Embora tenha escrito com letras grandes na primeira página o título Israel em abril, livro que publicaria em 1969, há, nesse documento de Erico, anotações que seriam utilizadas em Solo de clarineta, além de outras, de naturezas diversas. Assim como não seguiu ordem cronológica nas memórias – ele mesmo diz que resolveu fazer com o “elemento tempo uma espécie de mingau” –, tratou do mesmo assunto não só em um caderno. Portanto, este 067268 não é o único em que trata do conteúdo dos dois livros.
Na margem esquerda veem-se indicações alternadas de títulos dos livros ao lado de trechos do diário: Solo de clarineta ou Israel em abril, o que sugere que Erico procurou relacioná-los. Anotou-os para indicar o destino do trecho ou para assinalar que o tinha utilizado. Os riscos, às vezes sobre páginas inteiras, não deixam dúvida: estavam descartadas. De qualquer modo, ressalta, no caderno, o viajante em exercício de escritor.
Está claro que, para o leitor, é melhor ler o Solo e Israel em abril editados em livro. O sabor das notas no diário fazem a delícia é do pesquisador ou daqueles que, mesmo sem ser especialistas, se interessam em ver como germina uma obra, como funciona a cabeça de um escritor em viagem.
Diferentemente dos cadernos de viagem de Otto Lara Resende, para quem a finalidade das anotações acabava ali mesmo, assunto de mais de um post aqui na seção Cadernos de Escritores, este de Erico Verissimo serve ao memorialista que, daquelas notas ligeiras, partiria para um aprofundamento e tratamento literário nos livros que escreveria. Não é à toa que ele inclui lembretes do que deve estudar para ampliar determinada impressão. Foi assim que, no terceiro mês de viagem, ao chegar em Toulouse, onde fez conferência sobre o ato da criação do romance, anotava: “Estudar a história da cidade”, além de ler sobre as igrejas locais.
Curiosamente, grande parte desse diário é escrita em inglês, o que significa que, ao entrar no avião, Erico incorporava a língua internacional; abria-se ao desconhecido. Foi um viajante sôfrego, até mesmo “insensato”, reconhece ele a certa altura, ao se dar conta da intensidade da programação de alguns dias. Apesar disso, não deixa de se sentir um pouco tenso e até mesmo de sentir manifestação de uma angina, especialmente no lado esquerdo do pescoço, isso no início da aventura de 1966, quando deixa Washington em 2 de março daquele ano, com destino a Roma: "Feel a little tense”. “I feel na angine, mainly in the neck, left side”. Preso à cadeira, ele tinha um sono em fatia, interrompido pela ansiedade e pelas “bundadas das aeromoças e aeromoços”, escreve o Erico tenso, mas divertido, no caderno de notas.
Em Roma, chegar ao Hotel Pensione, seu “velho palazzo”, era um alento. Passeava como nunca: revisitava com o mesmo encantamento a Piazza Navona, Fontana di Trevi e, meticuloso, registrava as despesas, que não ficavam em menos de 30 dólares diários naquela época. Sem compras, lembra ele.
Para um homem que detestava a vida rural, como confessa no Solo, percorrer o roteiro de grandes cidades e vilas europeias era mesmo mágico: “I got a spell of Florence”, escreve, ao reconhecer o encantamento por Florença, mesmo depois de ter se deslumbrado com a Perugia e com a Toscana. Mas Veneza é que era especial, a show case – registra. Como se não bastasse, a cidade ainda lhe ofereceu boas conversas com o escritor e crítico literário brasileiro Alexandre Eulálio, que ali chegara naquele 1966 para ficar até 1972 como leitor brasileiro na Università degli Studi di Veneziae. Eulálio pôde assistir ao enterro de Stravinsky que, morto nos Estados Unidos, em 1971, deixara registrado, em testamento, o desejo de ser enterrado no cemitério da Ilha de San Michiel, em Veneza. Em artigo intitulado “Aquela morte em Veneza”, publicado décadas depois, o crítico descreve a cerimônia. Por sua capacidade narrativa, vislumbra-se o sabor das conversas que teve com um romancista do calibre de Erico Verissimo. Se é possível imaginar, Veneza ficava ainda mais rica para o autor de Olhai os lírios do campo.
“Veneza morre às onze. Os cafés e bares morrem. Até as pombas desaparecem”, anota Erico no caderno, antes de embarcarem de volta a Roma, onde os esperavam o poeta Murilo Mendes, que na época dava aula de cultura brasileira na Universidade de Roma, e sua mulher Maria da Saudade na “esplêndida”, destaca Erico, via Del Consulato 6.
“Menor e mais frágil do que pensávamos” é como Erico descreve o papa Paulo VI, que veem no dia 30 de março, dois dias antes de partirem para Israel, a convite oficial do governo daquele país. Entre palestras e visitas a diferentes segmentos da sociedade, ele tem encontro agendado com Golda Meir, que naquele ano terminava o mandato de ministra dos Negócios Estrangeiros. “Conversa sobre socialismo. "Not only material but also spiritual”, é o que ele conclui do tête-à-tête com a futura primeira-ministra de Israel. As notas relativas a essa visita seriam utilizadas em Israel em abril, cujos originais de 343 páginas em datiloscrito, encadernadas, chegaram ao IMS em 2019.
O fato de Solo não ter sido concluído, deixa, naturalmente, várias notas inaproveitadas. As experiências em Portugal estão vasta e gostosamente documentadas no livro, mas, no capítulo que trata da Espanha, o memorialista, que trata com forte emoção da visita à casa onde nasceu Federico García Lorca, em Fuente Vaqueros, e do impacto que lhe causou Granada, por ser a cidade onde o poeta do Romancero gitano foi assassinado, não teve tempo de desenvolver seu encantamento por Salamanca: “Pode dar boas páginas para Solo de clarineta”, escreveu no diário, diante da beleza das igrejas de pedra ouro-rosa que ficavam douradas às oito horas da noite. Teria desenvolvido a religiosidade e as cores da cidade, que o impressionaram tanto, mas um infarto o levou na noite de 28 de novembro de 1975.
No final do caderno, a lista de compras feitas. Aproveitava para abastecer o guarda-roupa dele e de Mafalda com boas peças de lã, mas o que despachava em um grande baú que ele nomeou “Trunkão” eram muitos livros e discos. Afinal, em entrevista a Celito de Grandi no Correio da Manhã de 19 de novembro ele diria: “E há estados de alma que nem a poesia consegue descrever ou mesmo sugerir, e é nesse ponto que a música pode ser chamada em seu socorro”.
Elvia Bezerra é pesquisadora de literatura brasileira e colaboradora no IMS.
Os mais de cem cadernos de escritores guardados no acervo de Literatura do Instituto Moreira Salles mostram o quanto esses itens, cada vez mais raros nos nossos dias, serviram no passado de laboratório de criação literária. Esta série em construção revela a singularidade desses documentos e a natureza de seus autores. Confira a coleção de posts elaborados a partir deste material cuidado e catalogado pelo IMS.