Aurora Miranda da Cunha, “A Outra Pequena Notável” – na definição do radialista César Ladeira –, carioca nascida na Rua da Candelária em 20 de abril de 1915, foi estrela de primeira grandeza da nossa música nas décadas de 1930, 1940 e 1950. Dona de um sorriso cativante, bonita por natureza – herdeira da beleza dos Miranda, bem como as irmãs Olinda, Cecília e Maria do Carmo (futura Carmen Miranda) e os manos Amaro (Mario) e Oscar (Tatá) – e com uma aptidão inata para a música, tem sido lembrada quase apenas por sua dedicação à irmã famosa, tanto em vida de Carmen quanto após sua morte. Aurora foi, sim, guardiã incansável da memória da irmã. Mas, neste ano do seu centenário, merece ser lembrada também como a grande artista que sempre foi, merecedora de um lugar de destaque entre as maiores cantoras da música popular brasileira.
Começou a cantar meio por acaso, aos 14 anos: quando o violonista e compositor Josué de Barros (o descobridor de Carmen) ia à Travessa do Comércio dar aulas de canto para sua pupila (então uma aspirante a cantora), sempre acabava ensinando algo para as caçulas, Aurora e Cecília (que, mais tarde, também chegou a experimentar a vida artística por um breve período, antes de se casar). Por ser muito nova, a família decidiu que Aurora só estrearia profissionalmente depois dos 18 anos. Até lá, era levada pela irmã Carmen ou por Josué de Barros para as rádios e gravadoras, onde vez ou outra participava dos coros, para ir ganhando experiência.
Durante uma apresentação beneficente no Cine Atlântico, em Copacabana, em agosto de 1932, Carmen chamou a irmã ao palco, promovendo assim o début informal, aos 17 anos, da cantora Aurora Miranda, que estreou em disco no ano seguinte, logo após ter completado a maioridade. No dia 22 de maio de 1933, gravou ao lado do Rei da Voz em pessoa, Francisco Alves, seu primeiro disco, lançado em junho pela Odeon, com a marcha “Cai, cai, balão” (de Assis Valente) e o samba “Toque de amor” (de Floriano Ribeiro de Pinho). No mesmo mês de junho, foi apresentada oficialmente ao público pelo próprio Chico Alves, que a convidou para cantar “Cai, cai, balão” em seu show no Teatro Recreio.
Com Carmen na Victor e Aurora na Odeon, as duas irmãs inseparáveis tornavam-se “rivais”. Em sua premiada biografia Carmen, lançada em 2005 pela Companhia das Letras, Ruy Castro explica, na página 90, por que Aurora não foi para a gravadora da irmã:
Por isso mesmo – para eliminar possíveis confusões. Era inevitável que Aurora cantasse parecido com Carmen: o timbre era semelhante (afinal, eram irmãs) e nem sempre ela conseguiria evitar algumas bossas típicas da mais velha, adquiridas pela constante observação (e quem mais do que Aurora já vira e ouvira Carmen?). No futuro, Aurora evoluiria para um estilo próprio, mas, no começo, não interessava à Victor ter em seu cast uma Carmen a minuta, para concorrer com a própria. Já para a Odeon, interessava, e muito, ter uma voz que competisse com a de Carmen.
Competição que, diga-se, só existia no âmbito profissional. Porque as duas, não obstante uma diferença de seis anos, eram unha e carne, as melhores amigas uma da outra, admirando-se e ajudando-se mutuamente (e ainda tinham o mesmo 1,52 metro de altura). Talvez por conta dessa grande admiração, Aurora tenha inconscientemente se colocado à sombra de Carmen, como se esta fosse a cantora de verdade na família e ela, Aurora, apenas uma coadjuvante. Ruy Castro escreve sobre isso no livro Carmen, na página 482:
O futuro seria ainda mais injusto para com ela, reduzindo-a à condição de irmã de Carmen e se esquecendo de que, com “Cidade maravilhosa”, de André Filho, Aurora sempre teria um nicho só para ela na história. Mas ela própria contribuiria para esse esquecimento, nas centenas de vezes em que silenciaria sobre si mesma para falar sobre a irmã.
É mesmo injusto deixar Aurora como coadjuvante da irmã mais famosa. Porque, durante a década de 1930, graças à sua voz afinadíssima e ao seu canto firme, cheio de graça e bossa, ela se afirmou como uma das grandes artistas da nossa música popular. Somente em 1933, emplacou três grandes sucessos: as marchas “Cai, cai, balão” e “Se a Lua contasse” (de Custódio Mesquita), esta gravada em dupla com João Petra de Barros, e o foxtrote “Você só… mente” (dos irmãos Hélio e Noel Rosa), que cantou junto com Francisco Alves.
De Custódio Mesquita (com quem teve um namorico entre 1934 e 1935), registrou em disco mais de duas dezenas de músicas. Entre seus compositores preferidos estavam Assis Valente, André Filho e Alberto Ribeiro (de cada um deles, gravou mais de uma dúzia de composições), Walfrido Silva, Alcyr Pires Vermelho e Ataulfo Alves. Foi responsável por lançar músicas dos melhores autores da época: Noel Rosa, Ismael Silva, Ary Barroso, Vicente Paiva, Benedito Lacerda, Synval Silva e Herivelto Martins, entre outros.
Os compositores preferidos de Carmen, sabendo que sua irmã era também uma ótima cantora, passaram a procurá-la para oferecer suas criações. Um deles, André Filho, amigo das Miranda, já tinha sido gravado por ambas quando deu para Aurora (e não para Carmen, como seria de se esperar) uma marcha que, registrada em estúdio em 4 de setembro de 1934 por ela e pelo próprio autor e lançada no mês seguinte sem muito estardalhaço, terminou em segundo lugar no concurso de Carnaval de 1935 e acabou por se tornar o hino oficial do Rio de Janeiro. O nome da marcha: “Cidade maravilhosa”, cantada por Aurora no filme “Alô, alô, Brasil”, lançado naquele ano.
Ainda em 1935, ela apareceu no filme “Estudantes” interpretando “Linda Ninon” (de João de Barro – o Braguinha – e Cantídio de Melo) e “Onde está seu carneirinho?” (de Custódio Mesquita). Em 1938, participou do filme “Banana da terra” com “Menina do regimento” (de João de Barro e Alberto Ribeiro).
Aurora brilhava nas telas, nos microfones das rádios Mayrink Veiga e Tupi (do Rio) e Record (de São Paulo), nos palcos dos teatros, cinemas e cassinos e também no exterior, através de apresentações radiofônicas e de shows ao lado de outros artistas brasileiros. Com a irmã Carmen, formava uma dupla imbatível, de tremendo sucesso lá fora: las hermanas Miranda arrebatavam o público pelos diversos países latino-americanos por onde passavam. Mesmo com tanta sintonia, Aurora e Carmen gravaram apenas um disco juntas, em março de 1936, com o samba “Rancor” (de Augusto Rocha e Paulo de Frontin Werneck) e a marcha “Cantores de rádio” (de João de Barro, Lamartine Babo e Alberto Ribeiro).
Foi cantando essa marcha (“Nós somos as cantoras do rádio / Levamos a vida a cantar / De noite embalamos teu sono / De manhã nós vamos te acordar”…), usando cartolas e casacas de lamê (confeccionadas por Carmen), que as irmãs Miranda apareceram na cena mais famosa do filme “Alô, alô, Carnaval”, rodado em 1935 e lançado no início de 1936 com estrondoso sucesso. Aurora aparece ainda em outra cena do filme cantando o samba “Molha o pano” (de Getúlio Marinho e A. Vasconcelos) com Benedito Lacerda e seu conjunto regional.
Dona de uma bem-sucedida carreira, não escondia, no entanto, que trocaria todo o sucesso por um igualmente bem-sucedido casamento. Que veio em 19 de setembro de 1940, com o comerciante Gabriel Richaid. Aurora havia gravado, em março, dois discos de 78 rotações (pela Victor, para onde se transferira desde 1938); só voltaria a gravar no Brasil 12 anos depois. Em fevereiro de 1941, desembarcou nos Estados Unidos com o marido, indo morar com Carmen (já famosíssima por lá) e dona Maria (matriarca das Miranda). Lá, neste ano, registrou seis fonogramas em estúdio, acompanhada pelo Bando da Lua.
Mesmo tendo Carmen como madrinha (e o sucesso de nossa Brazilian Bombshell por lá era retumbante), não repetiu o feito da irmã. Mas deixou seu talento imortalizado num filme de Walt Disney que misturava atores reais com personagens de animação: “Você já foi à Bahia?” (“The three caballeros”), rodado em1943 e lançado no ano seguinte. Na tela, Aurora passeia pelas ruas de Salvador com Zé Carioca e o Pato Donald (apaixonadíssimo por ela!), enquanto interpreta “Os quindins de iaiá” (de Ary Barroso). Como atriz, fez parte do elenco de outros três filmes de Hollywood: “A dama fantasma” (também rodado em 1943 e lançado em 1944), “Brazil” e “Os conspiradores” (ambos de 1944). Retornaria ao cinema apenas em 1989, numa participação especial no filme “Dias melhores virão”, de Cacá Diegues.
De volta ao Brasil em meados de 1951, com o marido e os filhos – Gabriel e Maria Paula, nascidos no exterior –, retomou sua carreira, cantando na Mayrink Veiga e na boate Night and Day, na Cinelândia. Ganhou uma canção inédita de Ary Barroso, “Risque”, que gravou na Continental em março de 1952, junto com “Faixa de cetim” (do mesmo compositor). Entre 1956 e 1957, ainda lançaria três discos de 78 rotações e um LP pela Sinter com regravações de seus antigos sucessos, encerrando enfim sua marcante trajetória como cantora, tendo registrado em disco mais de 170 fonogramas. Em 1957, na Night and Day, foi uma das atrações da revista “Mister Samba”, que homenageava Ary Barroso.
Ainda teria fôlego para mais um último registro sonoro, às vésperas dos seus 80 anos: em 1994, gravou com Sílvio Caldas, para o songbook do mestre Ary, o samba “Quando eu penso na Bahia” (parceria com Luiz Peixoto), revivendo o dueto de 1937 entre a mana Carmen e o mesmo Sílvio Caldas. Em 1995, cantou no Lincoln Center, nos Estados Unidos, em homenagem aos 40 anos da morte da irmã famosa.
Em entrevista publicada no Jornal do Brasil de 4/11/1971 (Caderno B, página 8), por ocasião do retorno de “Você já foi à Bahia?” aos cinemas cariocas, Aurora falou sobre seu retiro da vida artística e sua opção por uma vida de pacata dona de casa, minimizando (como costumava fazer) sua importância na música brasileira:
Apesar de minha veia artística optei pelo casamento, que continua feliz até hoje. Artista mesmo era Carmen. Eu fui mais consequência. Gostava de cuidar dela, que não tinha a mínima noção das coisas práticas. Não me arrependo da opção. Sou muito solicitada e raramente aceito. E sou bem aceita porque tenho nome. Pode ser que um dia me dê na veneta de voltar, recordar coisas antigas.
Em 1972, o cineasta Antônio Calmon entrevistou Aurora por três dias, para uma reportagem publicada no DI – Jornal Nacional em duas partes (30 de janeiro e 6 de fevereiro) sob o título “Minha irmã Carmen”. Às vésperas de seus 55 anos, a cantora conservava a beleza e a vitalidade da juventude. O autor assim a descreve no texto: “D. Aurora Miranda graças a Deus vive para o presente e para o netinho que está sentado em seu colo enquanto ela fala. É das pessoas mais agradáveis que já conheci, bonita por fora e por dentro”. No jornal O Estado de S. Paulo de 14 de fevereiro de 1999 (Caderno 2, página D7, edição especial sobre os 90 anos de Carmen Miranda), Aurora estabeleceu a diferença entre as duas: “Fui a única feliz de todos os irmãos; Carmen, a mais infeliz”.
Aurora foi quem provavelmente mais contribuiu para a preservação da memória de Carmen Miranda, desde o falecimento desta, nos Estados Unidos, em 5 de agosto de 1955. Aurora também foi uma das melhores cantoras deste país e nos deixou em 22 de dezembro de 2005, aos 90 anos.
Fernando Krieger é curador do acervo José Ramos Tinhorão no IMS.
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