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Diário poético de Mario Quintana

27 de janeiro de 2023
O escritor Mario Quintana está sentado e segura os óculos em uma das mãos
Mario Quintana/ Acervo IMS

O poeta gaúcho Mario Quintana mantinha um diário, mas não de anotações corriqueiras, ideias ou sugestões. Durante anos, e a cada dia, entre as décadas de 1980 e 1990, ele escreveu um verso, um poema de circunstância ou uma quadrinha. O conjunto desse material, posteriormente publicado em formato de agenda pela Editora Globo, foi organizado, datilografado, provavelmente revisado por ele e conservado em seu arquivo, hoje no IMS.

Comparando-se, por exemplo, os originais do ano de 1990 com a agenda lançada naquele ano, vê-se que as marcas da revisão final nas folhas hoje amareladas seriam perfeitamente incorporadas à edição. E não se pode deixar de imaginar o poeta, sentado em sua cama no quarto do Hotel Majestic, onde morou de 1968 a 1980, ou no Porto Alegre Residence Hotel, sua casa de 1980 até o final da vida, ambos na capital gaúcha. Ali ele registrava o primeiro pensamento do dia, quem sabe, o último, ou ainda células de poemas.

“Mas se o próprio dono do segredo não o soube guardar, eu é que vou guardá-lo?”, escreve ele em janeiro, com graça e não menos verdade, antes da irreverência de “O nono mandamento”: “‘Não cobiçarás a mulher do próximo’. (Só quando ele estiver distante...)”.

Nascido em 30 de julho de 1906, em Alegrete, na adolescência Quintana já substituía o estudo de matemática pela leitura de Dostoiévski, e, como era próprio de sua geração, lia os clássicos franceses. Desse modo, sua presença, ao lado de Erico Verissimo, Henrique Bertaso e Mauricio Rosenblatt na Livraria do Globo, embrião da lendária Editora Globo, de Porto Alegre, contribuiria para o sucesso editorial da casa que introduziu nomes importantes da literatura universal no Brasil. Como homem culto, evidentemente Quintana conhecia bem Camões, aquele cujo nome “era retorcido com um búzio”, dizia o poeta gaúcho. Tão bem conhecia o bardo português que chegou a propor no Diário poético de 1990: “Qual ioga, qual nada! O melhor exercício respiratório/ é recitar as dezesseis linhas iniciais dos Lusíadas.”

Para quem quiser experimentar, é só começar a dizer a primeira estrofe dos clássicos versos de abertura que se popularizaram:

As armas e os balões assinalados
Que da Ocidental praia Lusitana,
Por mares nunca dantes navegados
Passaram muito além da Tropabana
[...]

até, na décima sexta linha, ler a afirmação do autor, que promete espalhar seu canto por toda parte “se a tanto me ajudar o engenho e a arte”. Se valer o conselho de Quintana, espera-se que a essa altura o declamador esteja completamente calmo.

Mario Quintana foi solteiro, não teve filhos e preferiu morar sempre em hotéis, o que, em parte, explica o tédio que deve tê-lo maltratado tantas vezes, como no registro de “Boato”, sempre na agenda : “Nas bocejantes tardes de domingo a gente se convence de que a vida não é tão curta como dizem”, ou de “Outono”: “O outono é um tio solteirão que mora lá em cima no sótão/ e a toda hora protesta aos gritos: ‘Que barulho é este na escada?’”

Nem sempre Quintana dava título aos versos de seu Diário poético, como os que registrou em 12 de abril:

Lembranças que naufragam
e que voltam num segundo...
São como navios fantasmas
surgindo do mar profundo!

Não foi diferente de outros poetas que transpuserem, para a poesia, palavras e expressões usadas em prosa como em crônicas ou cartas. Desse modo, há, nas imagens da quadrinha cotidiana acima transcrita a mesma atmosfera de assombro e de profunda nostalgia criada no poema “A carta”:

Hoje encontrei dentro de um livro uma velha carta amarelecida,
Rasguei-a sem procurar ao menos saber de quem seria...
Eu tenho um medo
Horrível
A essas marés montantes do passado,
Com suas quilhas afundadas, com
Meus sucessivos cadáveres amarrados aos mastros e gáveas...
Ai de mim,
Ai de ti, ó velho mar profundo,
Eu venho sempre à tona de todos os naufrágios!

Quintana também não deu nome à delicadeza dos três versos a seguir, registrados em 3 de setembro de seu Diário poético. Ao associar sorriso aos finíssimos traços que, ao cair, uma folha deixa na água, formando círculos quase invisíveis que se multiplicam lenta e suavemente, evoca o sorriso mais brando, assim como a ideia de água que Paulo Mendes Campos passa na crônica “Uma senhora”. O cronista trata de sua avó, dona Estefânia, que “foi uma senhora feliz. Não conhecendo a inveja, nunca falou mal de ninguém.” Confiava em Santo Antônio, segue o neto a defini-la, fazia almoços inesquecíveis para receber a família e amigos e era “verdadeira, simples, alegre como a água”. Ideia semelhante à do poeta de Canções:

(Leve sorriso da água, cada vez mais leve
[e mais distante, toda vez
Que uma folha tomba...]

Em 12 de setembro, Quintana escreve “Exegeses”:

Se um poeta consegue explicar tudo o que quis dizer
Com um poema, o poema não presta.

A informação me fez lembrar imediatamente de Manuel Bandeira no ensaio “Poesia e verso”. Conta ele que sentia um “pequenino alvoroço” toda vez que passava em frente a um hotel em cuja placa se lia “Hotel Península Fernandes”, no Centro do Rio. Certa vez, acompanhado de um primo, pediu-lhe que entrasse e perguntasse ao proprietário ou a alguém que o atendesse qual a explicação para o nome do hotel. O primo foi recebido por um senhor português que prontamente lhe disse: “F’rnandes porque é o meu nome, e P’nínsula porque é bonito”. O nome estava explicado, mas a emoção poética, não – conclui Bandeira, que se refere ainda ao episódio nas crônicas “Fragmentos” e “Alguns versos”. É desse mistério intrínseco à poesia que fala Quintana na sua observação. No dia seguinte, 13 de setembro, em “Instante e eternidade”, ele mudaria de assunto, mas o tema não o afastava muito do mistério:

Tão nossa
E tão além
– a que mundo pertences, Greta Garbo?

Era também admirador da atriz sueca nascida um ano antes dele. Juntava-se a Drummond, tão fã dessa lenda do cinema que, no início da carreira, quando ainda assinava com o pseudônimo de Antônio Crispim, o Poeta da Pedra homenageou-a com a crônica “O fenômeno Greta Garbo”, de 18/05/1930, no Minas Gerais. Houve algumas outras crônicas depois desta, publicadas em jornais do Rio, além do longo poema “Os 27 filmes de Greta Garbo”, em que o poeta escreve: “É assim que ela perdura/ no passado irretratável e continua no presente,/ esfinge andrógina que ri/ e não se deixa decifrar”.

Contrário às opiniões dominantes em torno dela, Otto Lara Resende, mineiro como Drummond e seu amigo, em carta a Fernando Sabino enviada de Bruxelas, em 17 de junho de 1959, escreve: “Vi de novo Greta Garbo no cinema, assisti a 4 filmes dela e concluí que é uma das mulheres mais chatas e mais feias que já vi”.

A agenda de 1990 caminha para o fim do ano, época de avaliações, reflexões, assim Mario Quintana encerra seu diário nos dias 29 e 30 de dezembro, com a delícia de “Recepção”:

No Céu vou ser recebido
com uma banda de música.
Os anjinhos estarão vestidos
no uniforme da banda,
com os sovacos bem suados
e os sapatos apertando!

e no dia 31, sob o título “Trinta e um de dezembro”:

Está na hora
De espanar as teias do baú vazio
E enchê-lo de novas esperanças...

Mario Quintana morreria em 6 de maio de 1994, deixando, como desejo de ser posto em seu túmulo, o seguinte epitáfio: “Um engano em bronze é um engano eterno”.

Elvia Bezerra é pesquisadora de literatura brasileira e colaboradora no IMS.


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