Para o meu irmão, Pedro.
1.
E agora, José? A expressão, pronta na boca, espera a situação do beco sem saída para ser pronunciada. Foi a pergunta que me fiz enquanto, de máscara, atravessava a Nossa Senhora de Copacabana, agora em profundo silêncio. Faz mais de sessenta dias e ainda parece faltar tanto. Lojas fechadas, um presidente estúpido, pais e avós que já se foram. E agora, José?
2.
Assim como “No meio do caminho”, Drummond conseguiu a façanha de incorporar ao registro informal da língua brasileira mais esse outro verso. E ainda que não saibamos o poema “José” inteiro, conhecemos o personagem, nos reconhecemos nele, naquilo que lhe falta: sem mulher, sem discurso, sem carinho, taciturno. Quer abrir porta, mas não existe porta. Não há, sequer, parede para encostar. É duro e não morre.
O poema saiu em uma magra coleção de mesmo título ao fim do livro Poesias, publicado em 1942, pela famosa José Olympio. Tempos depois, os 12 poemas ali reunidos ganharam protagonismo em uma edição própria com prefácio de Paulo Rónai. Por curiosidade: a capa foi desenhada por Drummond. A letra J, em traço fino e econômico, pousa seca e comprida ocupando a página do topo ao pé.
3.
Se o nome José aparece no acervo de Carlos Drummond de Andrade, adquire imediatamente corpo, vida, matéria.
Quatro anos mais velho que Drummond, José compunha com ele a vasta prole de 13 irmãos, filhos do coronel Carlos de Paula e de Julieta, todos nascidos e criados em Itabira do Mato Dentro, em Minas Gerais.
A roda dos anos gira e toda a extensa família dos Andrade vai desaparecendo, restando só Drummond e José. Este em Belo Horizonte e aquele no Rio de Janeiro, para onde se mudou em 1934 e de onde sairia somente em dois episódios antagônicos entre si: o enterro da mãe e o nascimento do primeiro neto.
A relação dos dois irmãos está em 37 cartas trocadas em um intervalo de 37 anos de distância. A conta não é difícil; em uma distribuição fria, é o equivalente a uma missiva por ano, não mais.
4.
Se o José do poema não é exatamente seu irmão – ou, o avesso disso, se seu irmão não é o José do poema –, a partir das cartas, podemos ver a sombra de um no outro.
Drummond, escorpiano de 31 de outubro, recebe, em 1925, a felicitação do irmão mais velho só alguns dias depois, em 4 de novembro, com justificativa cheia de humor:
venho hoje trazer-lhe meus parabéns pelo seu aniversário. Há um atraso que você, com grande alma, perdoará. Demais, isso de dar parabéns no dia exacto, além de passadista, dá ideia de uma duplicata que se vence.
Falando sobre seu próprio aniversário de 31 anos, José agradece “as palavras delicadas” enviadas por Drummond, mas pede que, na próxima vez,
se eu ainda estiver por este mundo, como demonstração de amizade, aceitaria pêsames. Isso de vida longa, paz etc, é uma utopia maravilhosa e... louca. Cada vez a vida é mais ordinária para mim.
Definitivamente, José, macambúzio, não era afeito à alegria das festas. Nas calendas de janeiro, quando costumamos ensaiar projetos, metas e expectativas pela chegada do ano ainda desconhecido, o irmão engrossa o coro dos descontentes, naquele 1962:
Passei o ano como passo os dias comuns. Os anos passam e se renovam, mas a gente... Não adianta celebrar novo ano, a não ser como você fez (uísque) para esquecer o ano velho que continua no ano-novo mais velho do que nunca, mas vestido de cueiros…
Se não o caracteriza certa joie de vivre, podemos tranquilamente fazer o exercício de imaginar José como alguém recolhido nos livros, sorumbático. Em boa parte da correspondência menciona o que estava lendo naquele momento. Na lista, estão Moby Dick e livros de autoria do irmão, a quem não só agradecia pelo envio como compartilhava uma palavra ou outra a respeito.
Não que poesia fosse seu gênero preferido. Em carta de 24 de abril de 1950, o irmão de um dos maiores poetas em língua portuguesa admite não gostar de poesia – registro aqui meu espanto inocente. A explicação não é lá repreensível: é que poesia “se afasta da dureza e da realidade da vida”. No entanto, naquela manhã, José abre uma exceção para o “soneto ‘Encontro’, rimado em decassílabos perfeito, clássico”, lido no Correio da Manhã e que seria incluído em Claro enigma, lançado no ano seguinte. A exceção não é pela forma, mas pelo conteúdo:
O assunto, nosso pai, me comoveu e, dele me fazendo lembrar, senti a força de sua humanidade, o caráter do velho trabalhador, do homem que vive em nós, apesar de estar morto.
Nesse breve comentário de José identificamos dois pontos principais da obra drummondiana: o trabalho formalístico e o tema familiar, que se arrastaria em vários e vários outros poemas do autor mineiro.
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A relação tanto de Carlos quanto de José com o grupo parental não parece exatamente harmoniosa; antes, deixa no ar certo nó. Ao informar sobre o estado de saúde da mãe, que convalescia em setembro de 1940, José emenda uma espécie de defesa de si (a acusação, se houve, jamais saberemos exatamente qual foi). Escreve:
Sobre minha "aparência ríspida" e "sentimento de família", acho que você labora em erro psicológico. Não sou tão ríspido assim, e atualmente não sei bem o que seja sentimento de família. Talvez você confunda, no meu caso, franqueza com rispidez e dever com sentimento.
Ele, que nunca se casaria, anuncia em 1º de maio de 1941: “resolvi tornar-me mais solitário do que nunca”. Alguns anos antes, compartilha com o irmão o verbo que o mantém vivo:
minha única fortaleza mora na indiferença por todas as coisas. Renunciar é o rei dos verbos. Ser indiferente é a minha única preocupação na vida. E por isso ainda vivo.
Não, nunca, indiferença – palavras de um espectro quase melancólico se repetem reiteradas vezes nas cartas desse homem cujo estado de saúde começa a declinar na década de 1950. E para os problemas de circulação que o impediam de caminhar, diz ele, “adotei o remédio – não tomar nada. O tempo da cura ou da moléstia é o mesmo”.
Tanto José quanto Drummond pareciam formar com o outro irmão, Altivo, a trinca mais próxima entre os 13 rebentos. Nas cartas trocadas entre si, um sempre menciona o outro, participando, à distância, alegrias – como casamentos e nascimentos – e burocracias – procurações e herança. Altivo, mais velho que ambos e, ao contrário deles, visto como “alguém tem tanto apreço pela vida”, acaba “assim lentamente na cama” (“a gente é feito para acabar”, posso ouvir José Miguel Wisnik cantar).
Na carta de 10 de junho de 1961, José entrega a triste notícia:
agora estamos reduzidos à metade. Sinceramente não esperava que Altivo se fosse tão depressa e principalmente antes de mim. Continuo sentindo que tudo isto é muito estranho, que não deveria ser assim.
No final desse mesmo ano, o irmão, agora ainda mais solitário, faz uma espécie de balanço dessa falta inerente à vida mesma:
esse tal jardim sentimental é como os jardins da terra: ora está florido, ora sem flores. Entretanto, posso avaliar o que isto significa na devida conta. Como você sabe, já vivi isolado, sem jardim, sem nada. O homem incompleto (Adão primitivo) não é alegre, mas é sossegado de espírito. Quando ele se acha completado é às vezes alegre e muitas vezes triste. E nunca está tranquilo. A vida foi sempre assim. Para a delícia de um manjar, é preciso antes a tortura de uma fome... Felizes mesmo são os imbecis e os cínicos.
A última carta entre José e Carlos é de 29 de novembro de 1962 – depois disso, silêncio no arquivo. Mas terá sido silêncio entre os irmãos?
5.
Se o acervo, a partir daí, não pode nos dizer mais nada, os livros lançados, sim.
Em Boitempo II (Menino antigo), Drummond publica o poema “Irmão, irmãos”, no qual, à semelhança do que faz no título, balança entre o plural e o singular, entre companhias e solidões: irmão como aquele que está “sozinho acoplado a outros sozinhos”. Em família, a linguagem sobe e desce escadas “do mais velho ao mísero caçula”; e todos compartilham não só a mesma casa e os mesmos pais como “os mesmos copos, o mesmo vinhático das camas iguais”. Apesar da aparente proximidade, irmãos são estranhos e se estranham (“Que léguas de um a outro irmão”), cavando distâncias que se dilatam naquilo que fazem, naquilo que pensam.
Na última estrofe, é Drummond quem nos pergunta: ser irmão é ser o quê? “Uma presença a decifrar mais tarde,/ com saudade?/ Com saudade de quê? De uma pueril / vontade de ser irmão futuro, antigo e sempre?”.
Ao taciturno irmão, Drummond dedicaria ainda outro poema, dessa vez mais solar: “Nova casa de José”, publicado nesse mesmo livro. O personagem, com certa rabugice, chega ao Paraíso e se põe a reclamar: “Pensei que fosse maior/ O azul das paredes está desbotado./ Então é isto, o Céu?”. Junto aos velhos santos, que insistem para que José brinque de roda ou amarelinha, ele responde “Obrigado (entredentes)”. A negativa do recém-chegado preocupa são Pedro, que admite que “José foi bom, / foi ríspido mas bom” e que “carece varrer do íntimo de José as turvas imagens/ de desconfiança e solidão”. A solução encontrada pelo santo é contar a ele uma piada fescenina. A essa sugestão, José já não é mais o que foge a galope, nem aquele que usa terno de vidro e busca o mar para morrer, como no poema de 1942 que leva seu nome. Agora, em sua nova casa, “José sorri ouvindo a piada”.
6.
Minha chegada ao IMS coincidiu com a vinda do Acervo de Carlos Drummond de Andrade, em 2011. Dediquei dois anos a organizar e descrever correspondências, recortes de jornais, cartões-postais que pertenceram ao poeta mineiro. Foi assim que me afeiçoei à sua idílica Itabira, à mãe, aos irmãos. Revisitar a correspondência de José Drummond, sobretudo agora, em quarentena, faz a razão ceder espaço à emoção: lembro do meu próprio irmão, de quem tento diluir a distância não em cartas, mas em ligações.
Ouça o poema "José" na voz de Carlos Drummond de Andrade
Elizama Almeida é assistente cultural no Instituto Moreira Salles e mestranda no programa de Literatura, Cultura e Contemporaneidade da Puc-Rio.