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De Martino, marinheiro e pintor

27 de fevereiro de 2019

Tão vasta quanto diversificada, a obra deixada por Edoardo de Martino no Brasil rejeita rótulos fáceis e análises reducionistas. Uma visita rápida ao conjunto de 72 desenhos do pintor, que compõem o acervo de iconografia do IMS, já basta para percebermos a variedade de temas, personagens e cenários que provocavam seu pincel. Se nos deixarmos levar sem pressa, além do deleite estético, as notas gráficas ali contidas desvelam aspectos de seu processo criativo, demonstram diálogos artísticos e dão indícios sobre pinturas atualmente desconhecidas do público.

Barcos ancorados, 1871. Desenho de Edoardo de Martino / Acervo IMS

Edoardo de Martino inscreveu seu nome na história da arte brasileira como pintor de marinhas na corte de Pedro II. O artista italiano, que nos anos de 1866 a 1875 viveu entre Rio de Janeiro e Montevidéu, é especialmente lembrado pelos quadros de grande formato que celebram episódios da Guerra do Paraguai (1864-1870). Expostas até hoje em museus e prédios públicos, essas pinturas alçaram de Martino à condição de pintor do grand genre de história, como atestam os jornais da época. Apesar de elogiosa, tal distinção não basta para qualificar o legado artístico construído ao longo de quase uma década de intensa atividade.

Os desenhos reunidos neste conjunto, procedentes da coleção Marta e Erico Stickel, apresentam diferentes tamanhos e formatos, feitos a partir de técnicas variadas que incluem grafite, aquarela e aguada de nanquim sobre papel.  Em comparação com a obra pictórica do artista, supõe-se que estes registros circunscrevam aos anos de 1870 a 1874, quando de Martino alcançou o auge de sua carreira no Brasil.

Muitos destes desenhos foram entendidos a partir de sua natureza transitória, ou seja, como etapa indispensável do processo criativo voltado à pintura. Reservados ao uso pessoal, não tinham a responsabilidade de apresentação pública. Tratam-se, sobretudo, de estudos de figura e de composição, destinados a tomar outra forma, como se evidencia na imagem abaixo.

Desenho de Edoardo de Martino, c. 1871 / Acervo IMS

As marcas quadriculadas no papel servem para estribar o artista no processo de transposição do desenho à tela, orientando a proporção da figura que será pintada em “ponto grande”. A nota escrita na margem inferior da folha indica que ele tinha a intenção de expor aquela pintura, mesmo antes de concluí-la: “Fare questo quadro per l'Esposizione del prossimo Febº. 1871” [Faça este quadro para a Exposição do próximo fev. 1871]. Na margem alta, De Martino deixou um lembrete para si mesmo: “Disegnare bene la linea della popa” [desenhar bem a linha da popa].

 

Jangada dos náufragos

Estima-se que Edoardo de Martino tenha pintado cerca de 400 telas ao longo dos quase dez anos em que viveu entre o Brasil e o Uruguai. Embora os painéis de grande formato sejam os mais reputados, a maior parte de sua obra é formada por quadros de cavalete.  Vendidas a colecionadores particulares e destinadas à decoração doméstica, muitas destas pinturas são hoje desconhecidas do público. Este parece ser o caso de uma tela exposta pelo artista em 1871, descrita em detalhes por um crítico de arte do período. Segundo ele, “o esplêndido quadro” retrata uma “jangada feita de destroços de um navio”, perdida “em meio às ondas negras do alto mar”, onde um homem, “no auge do desespero, segura com uma das mãos o mastro e com a outra estende uma lanterna para ser visto e socorrido”. É possível reconhecer o desenho abaixo nesta descrição. Mesmo sem conhecermos o quadro resultante deste estudo, senão pelas palavras do crítico, é curioso perceber no desenho a citação à célebre pintura de Gericault, Balsa da Medusa.

Estudo para náufragos em jangada, c.1869-1876. Desenho de Edoardo de Martino / Acervo IMS. À direita, tela Balsa da medusa, de Théodore Gericault. 1818-19 / Acervo Museu do Louvre

A Guerra do Paraguai

A pintura Combate Naval de Riachuelo, feita por encomenda do Ministério da Marinha e atualmente sob guarda do Museu Histórico Nacional do Rio de Janeiro, é uma das mais conhecidas de Edoardo de Martino. Na coleção de desenhos do artista, figura com destaque um dos estudos feitos no processo de sua composição. É interessante perceber as modificações entre o esboço e versão final. A mais evidente refere-se à canoa paraguaia, que aparece encalhada em primeiro plano, no centro do desenho, e foi suprimida na pintura. A derrota do Paraguai aparece simbolizada de maneira acentuada na tela, representada pelo naufrágio completo da pequena embarcação que sustentava a bandeira daquele país.

Zattere-Paraguayo, c.1869-1876. Desenho de Edoardo de Martino / Acervo IMS. Óleo sobre tela Combate naval de Riachuelo, de Edoardo de Martino, 1870 / Acervo Museu Histórico Nacional do RJ

Um aspecto curioso revelado na análise dos desenhos de Edoardo de Martino refere-se à recorrência de estudos de cenas de batalha campal da Guerra do Paraguai. Eles revelam o esforço do artista no exercício de representação da figura humana, que não era propriamente a sua especialidade. Nas pinturas de grande formato, a guerra foi representada pelas batalhas navais, em cenas protagonizadas pelos navios, para o que o artista tinha melhor traquejo no pincel. Talvez por isso, esses estudos não chegaram a ser transpostos à tela.

Na montagem da cena que retrata a batalha de Itororó, o artista valeu-se da convenção das pinturas de batalha. Ou seja, repetiu fórmulas pictóricas que remetem à tradição do grand genre das telas de história. Mortos em destaque no primeiro plano, o personagem principal montado a cavalo no centro da imagem, a bandeira do exército vencedor desfraldada em plano afastado, cavalos em escorço. São as chamadas tópicas artísticas, que conformavam a gramática visual do tempo.

Em outro desenho, ao invés da ação da batalha, De Martino representou um momento sensível, da comoção partilhada após o confronto. Tanto o cavalo quanto o oficial montado sobre ele são retratados com as cabeças baixas, como se prestassem reverência ao corpo estendido à sua frente. Este gesto se completa na pose do soldado ajoelhado em primeiro plano, de costas ao espectador, igualmente voltado ao combatente morto. No plano afastado, junto à margem direita, a silhueta de um clérigo encerra o sentido litúrgico que se depreende da narrativa. Por coincidência, ou não, no verso deste desenho o artista rabiscou em traços rápidos uma cena religiosa que parece representar Jesus Cristo penitenciado aos pés da cruz.

Batalha de Itororó, 1869. Desenho de Edoardo de Martino / Acervo IMS

Retratos de navios

De Martino se apresentava como “marinheiro e pintor”, duas atividades que se amalgamaram em sua trajetória. Foi como oficial da Real Marinha italiana que ele chegou à América do Sul, em 1866, a bordo do navio “Ércole”. Pouco tempo depois, assumiu a pintura como ofício. Os conhecimentos técnicos e a experiência trazida de sua vida no mar lhe qualificaram como exímio retratista de navios. Embarcações de todo tipo protagonizam suas criações, contextualizadas em cenas históricas, de gênero ou paisagens navais. Nos desenhos, maquinário e apetrechos náuticos eram anotados com a precisão de quem conhecia os meandros de seu funcionamento.  Nesta coleção, os retratos de navios se destacam pela quantidade. E apesar da recorrência do motivo, cada desenho resulta diferente do outro.

Alguns desenhos fazem referência a cenários e embarcações que De Martino conheceu nas viagens empreendidas como oficial da Marinha italiana.  Num dos estudos abaixo, o navio “Ércole” aparece cercado por icebergs, no que sugere recriar a última missão do marinheiro italiano, na volta que fez pelo Cabo Horn, ponto mais meridional da América do Sul.

O elo com Marc Ferrez

Os retratos de navios são elos que aproximam, de maneira paradoxal, os acervos de Edoardo de Martino e Marc Ferrez. O pintor italiano desenhou centenas de embarcações, como exercício voltado à pintura, ou como simples registro de sua fascinação por essas máquinas flutuantes. Marc Ferrez, designado pelo próprio Pedro II como Fotógrafo da Marinha Imperial, foi incumbido de, finda a Guerra do Paraguai, documentar em clichês a abundante e moderna frota constituída por força do conflito.

À esquerda, Belonave, 1871. Desenho de Edoardo de Martino. À direita, cruzador Almirante Barroso, Rio de Janeiro, RJ. 27-10-1888. Foto de Marc Ferrez / Acervo IMS

 

Os retratos feitos por Ferrez serviram como um poderoso instrumento de propaganda do Império. Os navios e os trens eram, então, índices da modernidade. Graças aos avanços alcançados pelas novas tecnologias de combustão a vapor, o trânsito de pessoas e mercadorias entre as nações se intensificava. Além disso, a esquadra atestava a supremacia bélica do Brasil na região do Prata.

Ferrez registrou os navios quando eles estavam aportados no Rio de Janeiro. As grandes naves figuram imponentes em enquadramentos fechados, que não deixam de valorizar os aspectos pitorescos da paisagem fluminense. Nesses registros, o balanço incessante do mar foi um desafio para o fotógrafo, que dependia da fixidez dos modelos durante o período de exposição. Não por acaso, nas suas fotos as embarcações aparecem com as velas recolhidas, as caldeiras de vapor desativadas. O resultado estático era o objetivo almejado. A imobilidade da linha do horizonte dava provas da perícia do artista.

Nos retratos de navio feitos pela pena de Edoardo de Martino o que se vê é o oposto. O artista cria o movimento do mar ou do vento para exibir suas habilidades no desenho. Os navios aparecem com as velas infladas, ou emborcados pelo mar revolto, representados como se estivessem em alto mar.

Belonaves, 1871. Desenho de Edoardo de Martino / Acervo IMS

 

Muitos destes navios devem ter sido observados de terra firme, quando estavam com as velas recolhidas, ancorados, como os vemos nas fotografias de Ferrez. Mas na imaginação do marinheiro, as embarcações aparecem submetidas às intempéries, levadas pelo sabor do vento, ou resistindo à força da maré. Movimento e fixidez serviam, assim, como índices de valoração das habilidades do desenhista e do fotógrafo, em polos opostos.

Os desenhos da coleção De Martino trazidos a público pelo IMS conformam um conjunto de grande valor artístico e documental. A partir de seu exame, é possível conhecer aspectos pouco explorados sobre a vida e obra deste pintor marinheiro, personagem incontornável na história da arte brasileira do século XIX.

Lúcia Klück Stumpf é doutoranda no Departamento de Antropologia Social da USP, onde pesquisa arte e cultura visual no século XIX nas Américas, com ênfase na Guerra do Paraguai, e mestre em Culturas e identidades brasileiras pelo IEB/USP (2014). É coautora, junto de Lilia Schwarcz e Carlos Lima Jr., do livro A Batalha do Avaí. A beleza da barbárie: a Guerra do Paraguai pintada por Pedro Américo (2013)