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Hans Gunter Flieg, 100 anos

03 de julho de 2023
Hans Gunter Flieg limpando a câmera Linhof, 1953. São Paulo, Brasil. Foto de Otto Svoboda/ Acervo IMS

 

São raras, e por isso importantes, as ocasiões em que se celebra o centenário de nascimento de uma pessoa ainda com vida. O Instituto Moreira Salles festeja o aniversário de 100 anos de Hans Gunter Flieg, completados nesta segunda-feira, 3 de julho, preparando um presente, para ele e para o público, que reflete a importância de seu trabalho: a exposição Flieg. Tudo que é sólido, com inauguração marcada para 22 de agosto no IMS Paulista. A mostra homenageia o fotógrafo e sua obra singular, desde 2006 sob a guarda do IMS.

O IMS tem mais de 35 mil negativos de Flieg, cuja história com a fotografia se mistura, em dois continentes, à história do século XX. Nascido em Chemnitz, na Alemanha, numa família judia de classe média que se mudou para Berlim, ele ganhou sua primeira câmera, de um tio, aos 9 anos – mesma idade em que viu o Partido Nacional-Socialista de Adolf Hitler chegar ao poder, com sua política antissemita. A Noite dos Cristais, em novembro de 1938, quando os estabelecimentos comerciais de judeus foram vandalizados, determinou a decisão da família Flieg (Hans, os pais Eva e Karl e o irmão mais novo Stephan) de emigrar para o Brasil.

A fotografia, atividade que até então se restringia à documentação esporádica de eventos familiares, tornou-se, para o jovem Hans Gunter, a perspectiva de ganha-pão num novo país de língua desconhecida, um modo de ajudar os pais, comerciantes, a sobreviver. Fez um curso rápido em Berlim, em 1939, na casa de Grete Karplus – ela fora fotógrafa do Museu Judaico local, fechado pelos nazistas.  E chegou ao Brasil em dezembro daquele ano, aos 16, pouco após a eclosão da Segunda Guerra, para se tornar um dos principais documentaristas da acelerada industrialização de São Paulo. Esta é, certamente, uma das principais vertentes de seu trabalho, e eixo da mostra com curadoria de Sergio Burgi, coordenador de Fotografia do IMS.

"Ele sai de uma Alemanha onde está ocorrendo um universo denso de revolução no campo da imagem, com a difusão da Leica e o surgimento de uma literatura sobre esta nova fotografia, de câmera na mão, 35 mm", observa Burgi. "Tem contato com tudo isso ainda muito jovem, e aqui, depois de fazer estágio com Peter Scheier e passar pelo estúdio de Irene Lenthe, fotógrafos de origem judaica, ele nascido na Alemanha, ela na Hungria, já estabelecidos em São Paulo, trabalha por três anos em indústrias gráficas, onde se municia tecnicamente para seguir seu próprio caminho". 

Quando se estabelece profissionalmente em São Paulo, no pós-guerra, Flieg passa a construir uma sólida relação com clientes comerciais. Trabalhou com agências de publicidade e indústrias, traduzindo em fotografias o desenvolvimento e a verticalização urbana de SP. É um profissional autônomo que vive da qualidade de seu trabalho.  

É interessante que, ao mesmo tempo em que documentou o acelerado desenvolvimento de Sao Paulo, com sua forte industrialização e verticalização urbana, manteve uma relação muito forte também com o circuito das artes, como prestador de serviço. "Ele é o fotógrafo de excelência desse circuito naquele momento", diz Burgi. "Vai ser o fotógrafo da I Bienal Internacional de São Paulo, em 1951, vai ter uma relação com o Masp,  com o os Bardi (o casal Pietro Maria, um dos idealizadores da instituição e seu primeiro diretor, e Lina Bo Bardi, arquiteta)". Flieg acompanha as obras do museu, da demolição do Belvedere Trianon à inauguração do prédio assinado por Lina. 

"A imagem contemporânea no século 20 não funciona de modo binário. Vai além da oposição entre arte e documentação, talvez por isso mesmo ela tenha tido uma permanência", observa Ricardo Mendes, pesquisador em história da fotografia no Brasil e criador do FotoPlus, site de referência sobre a fotografia no Brasil, com abrangente banco de dados.

O comentário dá conta da extensa produção de cerca de quatro décadas de Flieg, cuja obra é tema do blog Flieg de Bolso, tocado por Ricardo. Ele destaca um fato importante para que hoje seu trabalho possa ser estudado e seja fonte de exposições como a que o IMS inaugura em agosto:

"Flieg, como (Marcel) Gautherot, são dos raros fotógrafos cujos acervos conseguiram chegar até nós com relativa integridade, permitindo um potencial de produção de conhecimento sobre esse material", nota ele.

O reconhecimento transcende as áreas em que atuou. Uma primeira homenagem este ano não veio das artes ou da fotografia, mas do cinema. Criador do É Tudo Verdade, mais importante festival de documentários da América Latina, o curador Amir Labaki escolheu um autorretrato de Flieg, do acervo do instituto, para ilustrar o cartaz, a capa do catálogo e as vinhetas da programação de sua 28ª edição, realizada em abril no Rio e em São Paulo.

Flieg em foto de de Nelson Kon, em 2004, aos 85 anos, e à direita, cartaz da 28a edição do festival de documentários É Tudo Verdade, que homenageou o fotógrafo com o autorretrato em sua juventude

 

Na coletiva de imprensa em que anunciou a programação deste ano, ele explicou sua opção:  "É o ano do centenário dele, que está vivo, lúcido e me emocionou", disse. "É uma foto admirável, é uma foto inacreditável, e que tem tudo a ver com o que aconteceu com o documentário nestas últimas décadas: o autor está presente na sua arte". Ou, nas palavras de Flieg nos anos 1980 – quando teve sua primeira retrospectiva do seu trabalho no Museu da Imagem e do Som – MIS – citadas por Labaki no catálogo: "Talvez  todas as minhas fotografias reunidas contem uma história de amor – minha descoberta do Brasil".

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