Neste ano de 2022 completam-se setenta anos que Hélio Pellegrino chegou ao Rio de Janeiro, para ficar. Formado em medicina pela Universidade de Minas Gerais, depois UFMG, era médico psiquiatra no Instituto Raul Soares, em Belo Horizonte, e estava casado com Maria Urbana Pentagna Guimarães. Cedia, enfim, aos apelos de Otto Lara Resende, que o instava a se mudar para a então capital federal, onde se reuniria aos outros três membros do lendário quarteto dos mineiros, já moradores da cidade: Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos e o próprio Otto.
Hélio Pellegrino nasceu em 5 de janeiro de 1924, em Belo Horizonte, e, mal saído da adolescência, tornou-se colaborador do jornal católico O Diário, da capital mineira, de onde partiu para a Folha de Minas. Depois viria o Liberdade, de apoio ao brigadeiro Eduardo Gomes e do qual foi um dos fundadores, além da revista Edifício, para citar algumas iniciativas de sua frenética trajetória jornalística, antes de dedicar-se à vocação maior: a psicanálise.
Amigo de Otto desde o tempo de O Diário, dele diria o autor de O braço direito, no depoimento gravado para o disco Os 4 mineiros, de 1981:
Paulo Mendes Campos, com quem convivi em São João del Rei, Fernando Sabino, que conheci, escoteiro, em Belo Horizonte, Hélio Pellegrino, que encontrei para encontrar-me, nós somos quatro cavaleiros de um íntimo apocalipse que há tantos anos temos vivido [...] .
À época da gravação já ia longe o tempo em que “os vintanistas”, como Mário de Andrade os chamou, se reuniam nos bares belo-horizontinos, compartilhavam os sonhos literários, as confidências das emoções das primeiras namoradas e “puxavam angústia” nos bancos da praça da Liberdade.
Ainda em 1946, ano em que chegou ao Rio, Otto escrevia a Hélio, quando de sua candidatura a deputado federal pela UDN: “Para você, czar de todas as rússias, formulo os melhores votos de felicidade partidária, a suprema”. Ao mesmo tempo, ia abrindo caminho para o amigo nos jornais cariocas. Mas não se pense que era sempre fácil. Se Hélio não caprichasse no texto, perdia definitivamente a chance de publicá-lo, como se lê na recusa de Otto em carta de 1946: “Não publicarei seu artigo. Ele é demasiado ruim para publicação, e com isto concorda o Edgar 1. O Mario Pedrosa, mostrei-lho, disse-me: ‘É uma merda’. E mais algumas observações, que tenho preguiça de lhe passar agora”.
Está claro que Otto, rapidamente convidado para colaborar nos principais jornais do Rio, continuava a cavar espaço para o amigo: no dia 10 de fevereiro de 1947 estreariam juntos na mesma página do Correio da Manhã: Otto na coluna “Vida literária”, e Hélio, assinando H.P., na “Quinzena Literária de Minas”. Apesar de seguir com atuação forte na imprensa, Hélio resistia a publicar livros, e só por insistência de amigos concordou, em 1947, que as edições Edifício lançassem a plaquete Poema do príncipe exilado. Somente décadas mais tarde voltaria a ser editado.
“Otto, luz de meus olhos”, escrevia ele de Belo Horizonte em carta ainda de 1947, acreditando que palavras doces acalmariam o amigo, ansioso por sua mudança para o Rio. Em vão:
Não; isto me aumenta a raiva de você. Sórdido amigo! Você me dirá, sei que me convencerá, e eu já estou de antemão convencido, que isto não tem importância, que a amizade não se alimenta da regularidade postal, hélas! Sei que isto tudo é verdade, mas o fato de sabê-lo não me deixa menos furioso.
Otto exigia a presença do companheiro, o que aconteceria em 1952, como já se disse aqui, quando Hélio finalmente transferiu-se para o Rio de Janeiro. Otto pôde então aprofundar a amizade mais apaixonada e mais integral dentre todos os seus laços fraternos, o que não significa dizer que nela deixasse de haver momentos de forte tensão.
Tão logo se ambientou na cidade, Hélio começou a fazer formação analítica com Iraci Doyle, numa época em que a psicanálise engatinhava no Rio de Janeiro. Em 1954, já formara uma boa clientela e, com a morte de Iraci nesse mesmo ano, ele, “órfão de mãe analítica”, lamentava, começaria análise-didática com Katrin Kemper, de quem disse: “Dona Catarina, por sua conduta terapêutica, ampliou e aprofundou minha convicção de que a análise, mais do que um processo técnico interpretativo, é a construção de um encontro humano para o qual o conhecimento científico é necessário, mas não suficiente”. Com ela, criaria a Clínica Social de Psicanálise, instituição de atendimento gratuito, que funcionou num casarão na rua Tonelero, em Copacabana, de 1973 a 1991. Simultaneamente, era o “homem-comício”, o orador inflamado que dava voz aos desejos do povo e que, sob o regime da ditadura militar brasileira, desafiava autoridades com sua fé na juventude e na crença do surgimento do “homem novo”. Não ficou impune pela liderança na Passeata dos 100 mil, em 26 de junho de 1968, nem por seus artigos de ataque ao governo no Correio da Manhã: enquadrado na Lei de Segurança Nacional, acabou preso durante três meses.
Em toda a sua prática, nunca deixou de contar com o apoio e a coragem da mulher, com quem se casara em 1948: Maria Urbana Guimarães Pellegrino, mãe de seus sete filhos e com quem teria ardorosa e tumultuada relação de amor: “O casamento feliz é prisão de cinco estrelas”, diria ele nas melhores fases. Talvez por isso mesmo buscasse outras prisões de mesmo naipe, o que resultou em dois outros casamentos: com a física Sarah de Castro Barbosa e a escritora Lya Luft, além de, entre as duas, ter reatado com Maria Urbana, a Grande, como dizia Otto.
A forma de amizade de Otto Lara Resende e Hélio Pellegrino reflete-se claramente na correspondência trocada entre os dois. Não só discutiam assuntos diversos, como tinham necessidade de relatar o cotidiano. E ainda havia espaço para fazer considerações a respeito de amizade, da capacidade de ser amigo, como se lê em carta de Otto de 10 de junho de 1951:
Convém à amizade que ela fique sendo apenas esse esforço inconsciente de dar-se as mãos nesse nevoeiro, de tocar-se através desse muro de vazio que nos separa uns dos outros. Estar só é, efetivamente, a fatalidade do homem, e aceitar essa fatalidade, virilmente, aí, nisso, deve residir a sua mais poderosa dignidade.
São 164 cartas enviadas pelo primeiro e 69 pelo segundo. A diferença sugere o quanto Otto, missivista compulsivo, reclamou da falta de resposta do interlocutor: “Me escreva, tenha pena de minha solidão e dos meus beirais flamengos pela madrugada”, apelava ele de Bruxelas, em 6 de abril de 1959. Tinha de esperar, no entanto, como se vê pela menor quantidade de cartas que recebia.
Hélio, de certo modo justificava: “A coisa mais importante do mundo é a possibilidade de ser-com-o-outro, na calma, cálida e intensa mutabilidade do amor”, afirmou em “Diálogos Possíveis com Clarice Lispector”, na revista Manchete, em absoluta coerência com a sua atitude na vida. Revolucionário essencial, viveu a plenitude nas esferas da vida amorosa, política e profissional. Psiquiatra, poeta e psicanalista que contribuiu para tirar a psicanálise do pedestal, como afirmou Paulo Roberto Pires em Hélio Pellegrino – a paixão indignada, foi ainda indispensável nos comícios contra o governo militar e firme negociador da liberdade dos estudantes.
Resistente a editar-se em livros, Hélio colaborou com artigos nas edições de Crise na psicanálise (1982), Grupo sobre grupo (1987) e Os sentidos da paixão (1987). Estava preparando a coletânea A burrice do demônio, lançada postumamente, em 1988, no mesmo ano de sua morte, que foi no dia 23 de março. Com organização de Humberto Werneck sua poesia foi reunida em Minérios domados (1993) e a neta, Antonia Pellegrino, organizou Lucidez embriagada (2004).
Rubem Braga, presente ao velório, não deixou de observar as amadas que pranteavam o morto: “Nunca vi tanta mulher bonita”, diria o Sabiá da Crônica, enquanto Otto, tomado de dor, escrevia carta muito comovente ao historiador Francisco Iglésias, dois dias depois da morte de Hélio Pellegrino:
[...] Tínhamos, depois de tantos anos, uma recíproca e instantânea compreensão, que se fazia quase sem palavras, ou com palavras de passe que vimos espontaneamente criando ao longo de tanto tempo repartido a dois. [...] Nosso encontro foi fulminantemente fraternal, a partir do primeiro minuto. E Você sabe que brigávamos muito, com uma franqueza rude, às vezes a ponto de chamar atenção dos passantes na rua (quando era na rua) ou de cometer alguns estragos em volta. Nunca, mas nunca jamais mesmo nos separamos um com mágoa do outro. E nunca deixamos de nos dizer brutalmente (eu talvez mais do que ele) o que pensávamos.
1. Edgar da Mata Machado.
Elvia Bezerra é pesquisadora de literatura brasileira e colaboradora no IMS.
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