Uma das principais fotógrafas de sua geração, conhecida mundialmente pelo trabalho em parceria com o povo Yanomami, Claudia Andujar (1931) terá seu acervo preservado e difundido pelo Instituto Moreira Salles, somando-se a uma vasta coleção de acervos sob a guarda do IMS.
O conjunto inclui cerca de 45 mil fotogramas, além de documentos e publicações de todas as fases da carreira da artista e ativista, entre outros itens. Grande parte das fotografias foi feita na Terra Indígena Yanomami nas décadas de 1970 e 1980, antes de sua demarcação, que ocorreu apenas em 1992. O acervo inclui também fotos feitas entre os anos 1950 e 1970, período em que a artista documentou o Brasil e outros países da América Latina e trabalhou para revistas importantes, como a extinta Realidade.
A preservação do acervo se soma a outras atividades do IMS em torno de obra de Andujar, como a exposição A luta Yanomami, que inaugurou em Nova York um tour pela América do Norte e pela América Latina. De 3 de fevereiro a 16 de abril, o centro cultural The Shed, em Nova York (EUA), apresentou a exposição A luta Yanomami, organizada pelo IMS em parceria com a própria instituição, a Fundação Cartier de Arte Contemporânea, a Hutukara Associação Yanomami e o Instituto Socioambiental (ISA).
A mostra é uma versão ampliada da exposição Claudia Andujar: a luta Yanomami, apresentada no IMS Paulista e IMS Rio, em 2018 e 2019, e em instituições europeias, como a Fundação Cartier, em Paris, o Barbican Centre, em Londres, e a Fundação Mapfre, em Barcelona, entre outras.
A nova versão da exposição apresenta não apenas a colaboração de Andujar com o povo Yanomami, que culminou com a demarcação da Terra Indígena em 1992, como uma nova geração de artistas Yanomami contemporâneos que têm usado o cinema, o desenho e a pintura para tratar de suas visões de mundo e amplificar a luta por direitos e soberania. Após passar por Nova York, a exposição seguirá para a Cidade do México e Puebla (México), Bogotá (Colômbia) e Santiago (Chile).
Coordenador do Departamento de Fotografia Contemporânea do IMS e curador da exposição, Thyago Nogueira comenta a chegada do acervo: “Andujar é uma das maiores artistas brasileiras vivas, com uma contribuição inestimável à história política e social do país. Seu arquivo é um capítulo inteiro da história da fotografia brasileira. Sua parceria com o líder e xamã Davi Kopenawa e sua colaboração ampla com o povo Yanomami, seja na produção artística, nas campanhas de vacinação ou na demarcação da terra indígena, são exemplares e admiráveis, com efeitos duradouros para o país. Andujar deu um sentido profundo à sua fotografia ao construir seu trabalho a partir de uma postura ética inegociável. Ao longo da vida, sua arte se transformou em uma plataforma para o povo Yanomami, que também será responsável por pensar e difundir essas imagens. Depois de dez anos de trabalhos conjuntos com Claudia, é uma honra e uma responsabilidade preservar e difundir seu legado. Espero que a vinda de seu acervo também transforme a forma como enxergamos nossos próprios acervos fotográficos e sua missão artística.”
O curador ressalta ainda a importância da circulação da obra de Claudia no exterior: “A circulação da obra de Andujar no exterior é importante não apenas para que o tamanho de sua contribuição seja devidamente reconhecido no cânone internacional como para mostrar ao mundo a relação estreita que se pode construir entre a arte e a defesa da vida, entre a proteção ambiental e a justiça social".
Claudia Andujar nasceu na Suíça em 1931 e cresceu na região da Transilvânia. Sua família paterna, de origem judaica, foi morta nos campos de concentração de Auschwitz e Dachau. Para escapar da perseguição, fugiu para os Estados Unidos e depois para o Brasil, em 1955. Aqui, começou a fotografar e construiu uma carreira no jornalismo. Em 1971, registrou os Yanomami pela primeira vez. O encontro mudou a vida da artista, que voltou inúmeras vezes ao território para fotografar aquela cultura, ainda relativamente isolada. A partir de então, dedicou sua carreira a documentar o território e a lutar, junto a lideranças indígenas e ativistas, pela demarcação do território, homologada pelo Estado brasileiro em 1992.
O acervo inclui itens relacionados a toda a carreira de Claudia. Entre as imagens produzidas antes do seu engajamento na causa indígena, é possível destacar as reportagens que realizou para a revista Realidade, uma das principais publicações do período, de 1966 a 1971. Para a revista, registrou temas como a intensa atividade de uma parteira na pacata cidade de Bento Gonçalves (RS); a situação dos pacientes do Hospital Psiquiátrico do Juqueri; e a deportação de migrantes desempregados pelo estado de São Paulo. Há ainda ensaios experimentais que Claudia desenvolveu em São Paulo a partir de seu interesse pela cidade e pela alma feminina, como as séries Rua Direita e A Sônia.
Maior parte do conjunto, as fotografias produzidas no território indígena, localizado nos estados de Roraima e Amazonas, foram tiradas entre os anos 1970 e 1980. Nas imagens feitas em suas primeiras viagens à região, Claudia documentou as atividades diárias dos Yanomami na floresta e nas malocas, além dos rituais xamânicos. Um dos conjuntos mais importantes do período é o registro das festas reahu, cerimônias funerárias e de aliança entre comunidades.
Conforme passava mais tempo na floresta, a artista modificava sua perspectiva e seu trabalho, distanciando-se do fotojornalismo e se aproximando do universo indígena, como afirma Nogueira: “Ao interpretar a sociedade Yanomami com imagens, e não palavras, como faziam a antropologia e o jornalismo, Andujar oferecia uma nova camada de significados”.
Outro destaque do acervo são os documentos que mostram o ativismo da artista e de diversas lideranças pela criação da reserva indígena. Em 1977, a fotógrafa foi expulsa pela Funai e impedida de voltar à área. Diante dos avanços depredatórios promovidos pelo governo militar, Claudia, o missionário Carlo Zacquini e o antropólogo Bruce Albert, entre outros ativistas, fundaram em 1978 a Comissão pela Criação do Parque Yanomami (CCPY). Durante os 13 anos seguintes, a CCPY atuou ativamente na luta pela demarcação, homologada em 1992. O material que agora chega ao IMS traz manifestos e relatórios da CCPY, matérias de imprensa nacional e internacional que denunciam a devastação do território e registros das campanhas de vacinação realizadas na região, cujas fotografias depois se transformaram na famosa série Marcados, entre outros itens.
Sobre sua produção e ativismo, Claudia afirma, em texto publicado no catálogo da exposição A luta Yanomami: “Estou ligada aos povos indígenas, à terra, à luta primária. Tudo isso me comove profundamente. Tudo parece essencial. Sempre procurei a resposta à razão da vida nessa essencialidade. E fui levada para lá, na mata amazônica, por isso. Foi instintivo. À procura de me encontrar.” Ainda em relação à sua amizade e aproximação com os Yanomami, complementa: “Penso que o mais importante é a oportunidade de apresentar as pessoas a outro aspecto do nosso mundo. Ao mesmo tempo, este outro aspecto do nosso mundo permite-nos reconhecer-nos nos outros seres humanos que merecem viver as suas vidas como eles desejam e de acordo com a sua própria compreensão do mundo.”