Uma viagem passada a limpo
1.
“Shalom!”, exclama um funcionário do aeroporto,
indicando-nos o caminho com um sorriso e um gesto.
É 1º de abril de 1966: Erico e Mafalda Verissimo pisam na Terra Santa. Santa, mas já não pacífica. Motivo da visita? O gaúcho, nos anos 1950, assumiu a direção do Departamento de Assuntos Culturais da União Panamericana, cargo antes ocupado por Alceu Amoroso Lima em resquício da política de boa vizinhança dos tempos de Roosevelt.
A convite oficial do governo de Israel, a missão de Erico era visitar em 19 dias “aldeias, vilas, cidades, kibbutzim e mochavim”. O pacote de viagem incluía ainda uma passagem pela Universidade Hebraica de Jerusalém, em que Verissimo – sempre divulgador da literatura brasileira no exterior – palestraria, mais uma vez, sobre o tema.
Se por fora parecia uma visita diplomática, por dentro parecia um pouco menos: a relação com o país israelense carregava certo tom pessoal, pois o autor tinha um carinho profundo por amigos de origem judaica como Maurício Rosenblatt, Maurício Seligman e a médica Stella Budiansky, a quem Israel em abril é dedicado, como contou Mànya Millen.
2.
Verissimo é nosso guia turístico por escrito. A intenção de fazer o leitor viajar fica transparente no prefácio “Aviso pregado à porta” cujo título aparece apenas no datiloscrito e foi excluído da primeira edição publicada em 1969. Escreve Erico:
Quis uma vez mais fazer o leitor viajar comigo, metido na minha pele, vendo e entendendo (ou não) pessoas, lugares e coisas através de meus sentidos e de meus pontos de referência psicológicos.
E consegue.
Como um “pintor frustrado, enamorado de formas e cores”, ele apresenta “pinturas verbais” das impressões da viagem em “sumárias aquarelas”, algumas apenas esboçadas em preto e branco. Para dar uma ideia da mão pictórica do gaúcho, reproduzo um pequeno trecho:
M. experimenta uma laranja israelense. Mordo com mais reverência lúdica do que gula uma das maçãs. (...) M. está um pouco assustada ante este itinerário geográfico-social. Teremos quase todos os dias ocupados da manhã à noite. Folheando o gordo programa, escrito em português e hebraico, ficamos a nos perguntar se tal ou qual coisa “vale a pena”. Deitamo-nos. Abro o volume das poesias completas de Fernando Pessoa, o único livro que trouxe comigo. O poeta responde à nossa pergunta:
tudo vale a pena
se a alma não é pequena
Apago a luz, fecho o livro e os olhos, e concluo que sábio é o turista que viaja com bagagem pequena e alma grande.
Faço um arco entre os séculos: no prefácio da edição publicada pela Companhia das Letras em 2010, Bernardo Kucinsky se pergunta “como Erico consegue guardar tantas minúcias, diálogos e nuances de cenários se não manteve, como revela, um diário de viagem”.
A dúvida de Kucinsky seria também a minha, não fosse o acervo de Verissimo sob a guarda do IMS. Estaríamos ambos influenciados por uma pista ambígua de Erico, ao afirmar que “durante a viagem nem sequer mantive um diário regular. Limitei-me a fazer uma caderneta, vez que outra, notas e desenhos apressados”.
O diminutivo -eta passa a ideia modesta, para não dizer equivocada, daquilo que, de fato, é o caderno da viagem a Israel.
Com mais de 250 páginas e medindo 13x20cm, mostra, logo na primeira página, o título Israel em abril na grafia de Erico, acompanhado de desenhos com seu traço igualmente inconfundível. Surpresa é notar que esse caderno, embrião de Israel em abril, começa em março, e na Itália: foi de lá que os Verissimo tomaram o avião para a Terra Santa. Mas, primeiro, pelas mãos de Erico, vamos andar pelos becos de Veneza, pontes de Florença e piazzas de Roma (ficamos sabendo que aqui ele encontra o poeta Murilo Mendes no famoso apartamento da Via del Consolato, nº 6).
Quem folheia o caderno com pressa pode deixar passar, a páginas tantas, duas rápidas notas escritas por Erico: “tudo que aconteceu e observei neste dia está anotado na caderneta amarela com o nº 8”. E mais à frente: “ver cad. amarelo nº 9”.
Se nos fiássemos apenas na palavra do autor e acreditássemos que Israel em abril teria nascido a partir das fracas impressões registradas em “uma caderneta com notas e desenhos apressados”, teríamos de lhe pôr um halo. É que o livro seria publicado em 1969, somente três anos após a visita ao país. Como Verissimo teria conservado detalhes de episódios, de concertos, datas, diálogos e jantares sem apoio do papel, sustentado apenas pela memória, essa ilha de edição?
Saber que existem cadernetas de números 8 e 9, além daquela usada por Erico, atiça o pesquisador-caçador.
A boa notícia é que a quase desprestigiada “caderneta” se converte, de súbito, em um clarão que leva a outras cadernetas. Supostamente, vão até o número 9. A má notícia é que, apesar da imersão teimosa empreendida no acervo, não encontrei as demais (fica aqui o convite-desafio aos pesquisadores interessados).
3.
No entanto, uma viagem ao centro do arquivo nunca é uma viagem perdida. Vejo a história se fazer ao contrário: o livro nasce nos papéis avulsos que se avolumam sobre a mesa. Agendas, datiloscritos, notas de leitura sobre judaísmo e antissemitismo, estruturas dos capítulos do livro, revisões, esboço de uma biografia de Jerusalém: estão presentes todos os vestígios de uma tarefa hercúlea, afinal, como transformar e atualizar o vivido e o ouvido mais de três anos antes em uma experiência plástica para o leitor?
Erico escreve:
Desdobro e examino um mapa de Israel. O país inteiro não é maior que o nosso estado de Sergipe. A Itália – é sabidíssimo – tem a configuração duma bota que chuta a Sicília. O Brasil sempre me pareceu um gordo pernil de carneiro. Pois Israel me lembra um canguru sem cauda, que tem nas mãos a cidade de Jerusalém. Formados pela Galileia e por pequeno trecho do vale do Jordão, a cabeça e o focinho do “animal” (o lago de Tiberíades é um olho arregalado para o mundo e a História) tocam perigosamente terras do Líbano, da Síria e da Jordânia. O pequeno canguru – com a faixa de Gaza colada à extremidade inferior do lombo, como um incômodo esparadrapo – mede apenas 420 quilômetros, da coroa da cabeça até os pés, isto é, o porto de Eliat, sobre o mar Vermelho. Sua parte mais larga é o “abdômen” – pouco mais de 110 quilômetros – na latitude de Sodoma, já no deserto de Neguev.
E está aqui o mapa de Israel, que tão belamente descreve, e das cidades de Tel-Aviv e Berseba, pelas quais passou. Também sobrevive o folheto bilíngue com a intensa programação dos 19 dias, entregue por Shaul Levin, adido cultural da embaixada israelense responsável por ciceronear os Verissimo.
Ausentes no livro, mas presentes no arquivo, estão ainda cerca de 40 fotografias da viagem. A primeira-ministra israelense Golda Meir, a palestra de Erico na Universidade Hebraica, a visita aos kibbutzim, o próprio Shaul Levin. Pessoas, museus e cenários ganham gesto, roupa e rosto.
A passagem de Verissimo está nas brincadeiras com linhas, caricaturas e tipografias coloridas, como quem, para descansar da atividade intelectual, se põe a rabiscar nas margens, absorto.
Revisor incansável, mesmo depois de Israel em abril ter sido impresso e publicado pela Editora Globo, o exemplar da primeira edição que está em sua biblioteca, e pode ser consultado no IMS pelo pesquisador, traz correções de grafia e de vocabulário que garantem maior leveza à frase. Em vez “(...) e não sei por que fresta entra o doce perfume que vem do laranjal”, Erico opta por “(...) e não sei por que fresta se insinua o doce perfume do laranjal”. (Escrever é esse eterno mirar-se no lago.) Logo no sumário do exemplar há um recado assinado aos futuros xeretas: “As correções que aparecem neste volume foram feitas pelo próprio autor – para uma nova edição – em junho de 1970? E.V.”.
4.
Parece que de cada andança de Verissimo pelo mundo, ao retornar para casa, saía um livro. Turista sábio, ele segue o próprio conselho deixado em Israel em abril: viaja com bagagem pequena e alma grande. Conhecido pelas narrativas de viagem, publicara na década de 1940 Gato preto em campo de neve (sobre sua primeira ida aos Estados Unidos) e A volta do gato preto (1946), e em 1957, México.
Israel em abri, porém, é um projeto no seio de muitos, e teve de esperar por três anos na fila dos lançamentos, pois o autor estava às voltas com O prisioneiro, romance que chega às livrarias em 1967.
Mais que publicar um novo livro com impressões sobre os lugares pelos quais passou, ficamos sabendo de um projeto inédito em outro caderno. Nunca foi para a frente, mas a ideia seria uma variação do mesmo tema: reunir as narrativas de viagens “num sentido mais fictício sem prejuízo (pelo contrário!) do factivo!” e lançá-las em formato de bolso sob o título Giramondo ou Novas andanças do Gato Preto.
5.
Em Israel em abril, aquilo que inicia com um “artista de férias” descrevendo com “despreocupada alegria lúdica” “o intenso aroma de flores de laranjeira” que o transporta para a primavera de sua infância em Cruz Alta, no Rio Grande do Sul, logo ganha contornos da complexa estrutura de Israel e cercanias: “eis que lá pelas páginas tantas me vi metido nessa emaranhada e misteriosa selva que é a história dos judeus e do judaísmo”.
Não está publicado, mas um trecho do prefácio datiloscrito encontrado em seu arquivo pode servir como eixo de leitura e, se não exagero, para a vida: “Todo livro devia trazer como epígrafe obrigatória a expressão cum grano salis”. A locução latina equivale a “com um pé atrás”, “com desconfiança”.
E é cum grano salis que Erico, atento à movimentação política e ao paraíso bíblico que a jovem Israel, que mal completara 18 anos, aparentava ser, escreve na caderneta: “não se sente a mão pesada do governo (...); há gente que está no kibbutz por não ter outra alternativa mas todas vêm por um ideal”.
Se em 1966 os anfitriões que receberam o casal Verissimo ainda expressavam alguma certeza de convivência pacífica entre israelenses e árabes, o projeto de paz começaria a naufragar no ano seguinte com a Guerra dos Seis Dias, embate que reafirmou a supremacia militar de Israel ao derrotar Egito, Síria e Jordânia e aumentar o próprio território. O país seria ocupado por novos-ricos insensíveis à tragédia palestina e se tornaria uma potência expansionista armada até o pescoço, conforme afirma Bernardo Kucinsky.
6.
A entrega, por Luis Fernando Verissimo, da última versão dos manuscritos de Israel em abril nos obriga a “escovar a história a contrapelo”, tarefa deixada por Walter Benjamin.
Na semana em que Israel recebe líderes de quarenta países em evento sobre os 75 anos da liberação de Auschwitz, voltar ao arquivo, indagá-lo, cutucá-lo, descobri-lo (no sentido de dessacralizá-lo) é também um compromisso de atualização da história.
E como passar a limpo essa viagem, essa região?
O Tempo de Erico acontece em 30 de janeiro de 2020 no IMS Rio, e lembro que a narrativa de Verissimo começa e termina com a palavra hebraica shalom, que por sua vez significa o mesmo que shanti em sânscrito: paz. Fico a imaginar que essa demanda atravessa a língua dos povos.
Elizama Almeida é assistente cultural no Instituto Moreira Salles e mestranda no programa de Literatura, Cultura e Contemporaneidade da Puc-Rio.