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O abismo

28 de maio de 2018

A série Primeira Vista traz textos de ficção inéditos, escritos a partir de fotografias selecionadas no acervo do Instituto Moreira Salles. O autor escreve sem ter informação nenhuma sobre a imagem, contando apenas com o estímulo visual. Neste mês Ronaldo Correia de Brito foi convidado a escrever sobre uma foto de Thomaz Farkas, feita em Brasília por volta de 1959.

Interior da casa de Zanine Caldas, c. 1959. Brasília, DF. Foto de Thomaz Farkas/ Acervo IMS

Descobri a mensagem à primeira luz que entrou pela janela. Mesmo nesse lugar onde apenas as leituras me ocupam o tempo, costumo acordar de madrugada. A noite de lua cheia confundiu-se com o amanhecer, as radiações prata se dourando numa alquimia lenta. Foi quando vi a folha de papel empurrada por baixo da porta, as palavras escritas em letras maiúsculas com lápis grafite. Seu camarada não chegará hoje, dizia. Talvez nunca mais, suponho resignado. Olho a cama, os livros, a paisagem cambiante, rasgo o papel suspeito e dou sumiço aos vestígios de celulose na bacia sanitária.

Todas as noites ouço uma coruja cantar. Quando me esforço, também percebo o som de suas asas partindo e regressando. O símbolo do conhecimento racional, dizia o avô sobre as corujas, afastando receios de agouro. Não tenha medo, transforme as aves em aliadas. É possível? Tudo é possível. E por que me escondem num quarto envidraçado? Por receio de suas ideias e palavras, elas se tornam perigosas quando você fala. Ninguém acreditaria nisso ao contemplar minha opacidade, o corpo mirrado e as camadas de mofo recobrindo a pele.
Que importa o sol, para quem nada espera do dia?

Quando não estou lendo, apuro os ouvidos e escuto. Percebo o mundo de uma maneira nova, com mais possibilidades do que supunha. Num dia de chuva forte e relâmpagos, não abri os olhos uma única vez. Com as pálpebras cerradas, pressentia a claridade externa. Caminhei inseguro pelo quarto, tateei objetos. Um filósofo antigo furou os olhos para pensar melhor. A sensação de não ver por escolha voluntária não é a mesma da cegueira irremediável. Sempre é possível reabrir os olhos e encontrar o que parecia extraviado.

Vivi os últimos anos numa agitação de lutas e pensamentos. Pregava ideias, propunha ações. Exilei-me e ignoro o que acontece em torno de mim. Antes acreditava ser impossível que o planeta pudesse girar sem a minha vontade. Gira em seus repetidos movimentos e essa consciência me acalma. Não me considero um enfermo, mas um forasteiro, um estranho. Finjo que durmo acordado, confundo as noites com os dias numa cegueira aparente. Assim atravessamos a noite ilimitada, esta irmã do silêncio eternizado, escreveu um poeta cujo nome esqueci.

Ninguém percebe a minha falta? A ordem das coisas não se altera se estou dentro ou fora desse quarto?

Uma dúvida que se agiganta, vira certeza.

Não sou doido, lunático ou irresponsável.

Terrorista?

Já me chamaram assim.

Agora é o terror que me espreita e não gosto do seu assédio.

Preciso manter a calma.

A propriedade é ampla, coberta de fruteiras e árvores nativas. Sonhei caminhando devagar, sem rumo certo. Avistei frutos e eles desapareceram quando tentei apanhá-los. Nem o refugo dos pássaros chegou à minha boca. Uma cerca de arame farpado limitava o terreno. Do outro lado, uma sucessão de montanhas, vales e pequenas aldeias. Eu queria alcançar esses lugares, mas a cerca me impedia. Um oceano se agitava entre escarpas fundas. Homens continham embarcações em meio às ondas. Senti pavor e fascínio. Sonho todas as noites com um abismo e imagens de águas revoltas e ameaçadoras. Melhor se não precisasse dormir.

Acordei com fome, o desjejum me esperava no carrinho de chá. Meu hospedeiro é sutil, nunca se revela nem cai nas armadilhas do hóspede, sabe que não posso arriscar-me. Cada recorte de vidro na parede é uma aquarela caprichosa, se modifica com a luz. Procure distrair-se, ele me aconselhou na única vez em que nos avistamos. Não usava a farda com que aparecia na televisão e nos jornais, sentia-se em casa. Apontou os livros, um castiçal sem velas, duas imagens de santas, o caxixi na prateleira alta. Talvez imaginasse que vou tocar o instrumento dos cegos pedintes. Não perguntei sobre o significado dos objetos, nem se os livros também foram censurados. Achei-o disperso, diferente do homem frio e arrogante amigo do meu pai num passado distante. Quando me trouxeram, em meio à escuridão e a chuva, vi a casa lúgubre e os jardins. Felizmente me alojaram nesse quartinho longe, um anexo arrumado às pressas.

Penso em fazer exercícios, mas sou preguiçoso, troco a cama pela mesa. Depois de saciado, encosto o carrinho à porta, obedeço fielmente às orientações. A personagem Bela espreitada por olhos e mãos invisíveis. Nenhuma Fera me visita, mas tento manter-me ocupado. Basta ao homem viver um único dia de liberdade, os outros dias podem ser gastos com lembranças e reflexões. Li num romance existencialista. O autor também escreveu que um pedaço de jornal era bastante para ler e pensar. Felizmente tenho alguns livros.

Sonhei repetidas noites com o mar e supus avistar-me num dos barcos à deriva. O pesadelo apavora, acordo suado e com tremores. Acendo uma vela, pois a claridade súbita e forte de uma lâmpada elétrica me incomoda. Um dia me deixaram sem as refeições. Isso aconteceu uma única vez, não quero pensar que pode ocorrer novamente. Passei o dia inteiro olhando pelas janelas. Descobri que os vidros são blindados e não será fácil quebrá-los, caso eu resolva fugir. Alguns ruídos suspeitos me fazem supor que me vigiam.

Meu camarada não irá chegar. Não adianta imaginá-lo caminhando sob as árvores, transpondo os grandes despenhadeiros, o oceano e a cerca de arame farpado. Estou só. A memória dos livros me assalta de repente. Continuo ligado a esses objetos misteriosos e cheios de volúpia, que carrego comigo para onde vou, como a roupa do corpo. Do que mais sinto saudade é de uma vasta biblioteca. Meu discurso sobre a liberdade de imprensa e o direito de fazer humor com as instituições, debochando até do sagrado, me faz pensar num conto do russo Mikhail Artsibachev. Pouco lembrado e menos lido, ele se viu proscrito pela ditadura comunista, sendo um revolucionário. Caiu no esquecimento igual a centenas de outros escritores russos, cujos nomes e obras o regime apagou, após a revolução bolchevique. O toro de madeira. Eu o descubro em meio aos poucos volumes de uma prateleira alta, numa antologia com vários escritores.

O estudante Veriguin, deportado político, anda pelo meio da floresta em direção à casa onde o seu amigo Chutof, igualmente revolucionário e perseguido, vive seus últimos dias, sofrendo de tuberculose. O contato com a floresta desperta em Vereguin o sentimento de que todo esforço é vão e que bastaria ao homem recolher-se à natureza e levar uma existência contemplativa e de poucos sonhos. Essas digressões provocam o riso no jovem comunista e a certeza de que após três dias de recolhimento, seria acometido pelo mais paralisante tédio. Mesmo assim ele deita na relva, aspira o ar úmido e cheio de fragrâncias, observa borboletas e escaravelhos, o céu entre as copas das árvores. Reagindo ao torpor, se levanta e procura o caminho que o levará à cabana do amigo exilado.

Ao atravessar uma clareira avista uma choça baixa, enfeitada com trapos coloridos, o telhado descendo até o chão. A estranha habitação humana, em meio ao capim e as flores, desperta sua curiosidade. Quando pensa em se dirigir à casa, percebe um velho de barbas longas, muito baixo, o corpo envergado, os braços longos, as mãos ultrapassando os joelhos. Ele pula no meio da vegetação, executa passos de dança, num ritual que parece cômico a Veriguin. O rapaz se esconde e aprecia a cerimônia, mas não resiste e sai do esconderijo, indo em direção ao velho. Ele se espanta que alguém invada o seu espaço inviolável, grita cheio de um medo feroz. Indiferente aos apelos, o bolchevique continua rindo e pede ao avozinho que não se zangue. O ancião entra na cabana e volta com um ídolo de madeira de feições toscas, levantando-o sobre a cabeça. Pronuncia algumas palavras mágicas, estranhando que o rapaz ainda não tenha sido fulminado por seu deus.

– Vai-te embora! Chau, chau... Kirmet, Kirmet!

O estudante finalmente compreende que chegara num lugar sagrado, onde os profanos não deviam entrar, e que o ancião procurava mandá-lo embora da clareira. Mas percebe apenas a comicidade do ritual e assume de propósito uma atitude ameaçadora. Num gesto insensato e tolo, saca o fuzil que carregava consigo e dispara uma bala no deus de madeira. Quando a fumaça se dissipa, o velho tenta levantar o deus quebrado e desfigurado, mas não consegue e foge. Veriguin continua sua jornada em busca do companheiro revolucionário.
Ele chega à choupana do amigo, encontrando-o à beira da morte e descrente dos valores que o levaram a passar um quarto da vida na cadeia. As pessoas já sabiam o que ele fizera ao velho e ao seu ídolo pessoal. Um amigo de Chutof, homem idoso e sábio, diz o seguinte:

– Cada homem tem o seu ídolo. Não se trata de saber que ídolo ele adora. Não nos convém nem ao senhor, nem a mim, perseguir a religião alheia. Trate de sua religião e não se meta com a dos outros. Não se afaste do caminho do bem e, assim, será o servo do seu próprio deus. Não na igreja, mas no espírito.

Veriguin questiona o velho rude que aprendera a filosofar sozinho, pergunta a ele como alguém pode crer num toro de madeira. Afirma sua fé apenas no homem, em todos os homens e na ideia de humanidade. O velho sorri condescendente e contesta:

– Não, o senhor está falando errado, não pode crer em cada homem, pois o homem é mortal, e mesmo durante a vida ele é insignificante... O senhor acredita, como todos nós, é na verdade e no bem. É a verdade e o bem que o senhor venera nos homens. Por isso é que, para o senhor, o homem é o toro de madeira.

O novo general que assumiu o poder resolveu dar continuidade à política de execuções sumárias, adotada durante o governo do general que o precedeu. Como tive acesso à informação privilegiada, tão importante para os subversivos perigosos?

A farda verde oliva, as quatro estrelas.

Visto-me de paletó como se fosse a alguma reunião, ou dar aula na universidade. O avô, o pai e eu seguimos a mesma carreira de professores. Só anos depois o pai entrou na diplomacia. Embaixadas na Argentina, no Uruguai e no Chile. A cada golpe militar, um novo endereço. Até exilar-se de vez no México, cidade para onde eu desejo ir, se escapar com vida.

Hoje, quando acordei, a porta estava aberta.

Ronaldo Correia de Brito é contista, romancista e dramaturgo. Autor dos romances Galileia, vencedor do Prêmio São Paulo de Literatura em 2009, e Estive lá fora. Publicou os volumes de contos Faca, Livro dos Homens, Retratos imorais e O amor das sombras.