Marcel Gautherot (1910-1996) nasceu num dia 14 de julho (a data em que se comemora a Queda da Bastilha), na Rue Bonaparte, bem no coração de Paris. Mais francês, impossível. Foi no Brasil, porém, onde desembarcou pela primeira vez em 1939, inspirado pela leitura apaixonada do romance Jubiabá, de Jorge Amado, que ele construiu toda a sua trajetória como fotógrafo, ajudando a documentar e a preservar o passado e a registrar a ideia de uma nação moderna que começava a ser moldada naquela época. Do Rio Grande do Sul à Amazônia, de Minas Gerais ao Ceará, de São Paulo a Alagoas, do Rio de Janeiro ao Pará, o fotógrafo conheceu o país como poucos, um país revelado por inteiro em Marcel Gautherot – Brasil: tradição, invenção, maior retrospectiva de sua obra exibida por aqui, que será inaugurada nesta terça-feira, 13 de junho, às 18h30, no Paço Imperial.
A exposição, que tem curadoria de Sergio Burgi, coordenador de fotografia do Instituto Moreira Salles – que adquiriu a obra completa de Gautherot em 1999 –, e de Samuel Titan Jr., é praticamente a mesma montada em 2016 na Maison Européenne de La Photographie (MEP), em Paris, quando Gautherot também foi apresentado por inteiro ao público francês. No Brasil, ela acontece dentro das celebrações dos 80 anos do Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Cultural), órgão com o qual Gautherot colaborou intensamente e longamente, unindo-se ao projeto de preservação da cultura nacional. Em 1940, ao se estabelecer definitivamente no Brasil, no Rio de Janeiro, depois de um ano servindo ao Exército francês no Senegal, durante a Segunda Guerra, Gautherot procurou o Sphan (Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, depois transformado em Iphan), dirigido por Rodrigo Melo Franco de Andrade, iniciando a parceria.
A primeira tarefa de Gautherot para o Sphan foi dada pelo arquiteto Lucio Costa, também integrante da instituição, por causa da experiência do recém-chegado. Formado em artes decorativas, o francês trabalhara como arquiteto de interiores e depois como fotógrafo no Museu do Homem, em Paris, onde começou a mergulhar no universo da etnografia, e recebeu a incumbência de organizar e fotografar as peças e o prédio do Museu das Missões, no Rio Grande do Sul, projetado por Costa.
“A experiência dele na França, primeiro no Museu de Etnografia e posteriormente no Museu do Homem é muito importante”, conta Mariana Newlands, curadora-assistente da exposição. “Todas as grandes figuras do mundo da arqueologia, etnografia, história estavam atuantes ali naquele momento. Então ele já traz esse olhar que ele desenvolveria aqui”.
A formação de Gautherot se evidenciaria nas duas principais vertentes de sua fotografia no Brasil: a etnográfica e a arquitetônica. Seu humanismo, sua paixão pela cultura popular e o olhar forjado pelos estudos de artes ajudaram a capturar um Brasil em transformação, que buscava preservar suas raízes enquanto acenava para a modernização expressada principalmente pelas linhas futuristas da arquitetura de nomes como o próprio Lucio Costa e Oscar Niemeyer. Este último, aliás, tornou-se um grande amigo de Gautherot, que imortalizou projetos como o Edifício Copan, em São Paulo; a Pampulha, em Belo Horizonte; mas principalmente Brasília. A capital erguida no meio do nada foi minuciosamente retratada pelo francês de todos os ângulos, desde sua construção até seus primeiros anos de vida, em imagens que permanecem até hoje icônicas. “O próprio Niemeyer dizia que ninguém conseguia mostrar melhor o que ele queria dizer com sua arquitetura do que Gautherot”, lembra Mariana.
No vídeo de meia hora que acompanha a exposição, o sociólogo, crítico de arte e pesquisador francês Jacques Leenhardt lembra que Gautherot estabeleceu desde sempre um diálogo profundo com a arquitetura. E conseguiu, com isso, criar um olhar distinto, como o que lança sobre Brasília. “Ele usa a neblina da manhã e toda uma série de fenômenos meteorológicos para criar uma poesia dessa arquitetura, dessa cidade que está nascendo”, observa Leenhardt. As séries de imagens feitas no mercado Ver-o-Peso, em Belém, e na praia de Aquiraz, no Ceará, ambas na retrospectiva, reforçam esse estreito diálogo na obra de Gautherot, que dizia que “uma pessoa que não entendesse de arquitetura dificilmente seria capaz de realizar uma boa fotografia”.
Leenhardt destaca também a importância da documentação no trabalho do fotógrafo. “Ele se considera um documentarista. Mas a documentação nunca é somente o que acontece, é também a formatação depois”, diz Leenhardt. “Essa geração toda usou a Rolleiflex, se beneficiou muito dos progressos técnicos para desenvolver uma certa forma de reportagem”.
A vertente documentarista fica bem evidente no Brasil mais profundo, ainda distante da modernidade, registrado por Gautherot. É o Brasil das festas folclóricas como o reisado, guerreiros e caboclinho; das romarias e procissões religiosas; dos impressionantes igapós amazônicos; da pesca tradicional, do artesanato ou do garimpo que aparecem em imagens de grande beleza, nas quais se destacam não apenas o movimento, o grupo, mas também os indivíduos. “Não sou um fotógrafo para a fotografia espetacular, eu detesto isso. Eu me interessava mais pelo povo, porque venho do povo, pessoalmente. Então o que me interessava justavamente era essa cultura popular”, disse ele, filho de um operário e de uma costureira, em depoimento dado à pesquisadora Lygia Segala em 1989, e incorporado ao vídeo que integra a exposição.
Gautherot não apenas trabalhava para o Sphan. Ele também compartilhava plenamente a visão de que era necessário documentar todas as manifestações culturais que estavam se perdendo pelo caminho. Esse entendimento o levou naturalmente à Comissão Nacional do Folclore e à Campanha de Defesa do Folclore Nacional, dirigidas pelo historiador Edison Carneiro. E suas viagens pelo Brasil se intensificaram ainda mais. “Eles promoviam semanas de folclores nos estados e Gautherot acompanhava e registrava tudo, mesmo as festas mais obscuras. Aquela que acontece uma vez por ano numa cidadezinha desconhecida, ele foi lá e fez”, conta Mariana.
A Bahia que trouxe Gautherot ao Brasil depois da leitura de Jubiabá, publicado em 1938 na França, aparece em um conjunto expressivo no qual se destacam, além das festas religiosas e da arquitetura colonial, as embarcações que circulam pelo Rio São Francisco ostentando as tradicionais carrancas, também fotografadas na mesma época por outro francês encantado pelo Brasil, Pierre Verger, que já trabalhara com Gautherot em Paris. Há fotos de Verger no São Francisco feitas por Gautherot e vice-versa. As fotos tiradas nessa ocasião foram, inclusive, tema da primeira mostra individual de Gautherot no Brasil. Bahia: Rio São Francisco aconteceu em 1995 na Casa França-Brasil, no Rio, apenas um ano antes da morte do fotógrafo.
Fazem parte ainda da retrospectiva fotografias sobre o barroco mineiro, tesouro cultural que esteve na base da criação do Sphan, e que por essa razão foi extremamente bem documentado por Gautherot. Além do casario típico das cidades históricas, integram esse conjunto imagens de muitas obras de Aleijadinho, entre elas os famosos profetas que pertencem ao santuário de Bom Jesus de Matosinhos, em Congonhas.
Na parte final da mostra estão os trabalhos mais voltados para a arquitetura modernista, da qual Gautherot foi um dos principais fotógrafos, documentando obras de Niemeyer, Lucio Costa, Olavo Redig de Campos, Affonso Eduardo Reidy e do paisagista Roberto Burle Marx, que foram publicados nas principais revistas do país e do exterior. Burle Marx tornou-se, assim como Niemeyer, um grande amigo, tanto que Gautherot instalou seu laboratório num anexo do escritório do paisagista em Laranjeiras, em 1965, que funcionou até sua morte, em 1996.
A documentação da construção do Museu de Arte Moderna, obra de Reidy, e a do Parque do Flamengo, com projeto paisagístico de Burle Marx, por exemplo, podem ser vistas nas paredes e nas vitrines que trazem livros e revistas, como a Módulo, dirigida por Niemeyer, sobre o assunto. Encerram a mostra imagens em grande formato da exuberante flora usada nos projetos de Burle Marx, provavelmente alguns dos derradeiros trabalhos feitos por Gautherot, que dedicou seus últimos anos à organização e catalogação de seu acervo.
É uma mostra abrangente, que apresenta ao público um Brasil ao mesmo templo múltiplo e único, retratado por um francês apaixonado pela terra que escolheu para trabalhar e viver, embora tenha se tornado mais conhecido do grande público após sua morte. “Nesse depoimento que está no vídeo ele se dizia triste porque ninguém nunca havia se interessado em fazer um livro dele com as fotos de Brasília”, diz Mariana. “O IMS fez muitos depois que sua obra veio para o instituto, ele teria ficado feliz”.
A mais recente publicação do IMS sobre o francês é Marcel Gautherot, fotografias, feito para a primeira montagem da retrospectiva em Paris, e que estará à venda na Livraria Arlequim, no Paço Imperial. Ele reúne textos dos curadores Sergio Burgi e Samuel Titan Jr., de Lorenzo Mammi, crítico de arte e curador de programação e eventos do IMS, e dos franceses Michel Frizot e Jacques Leenhardt. O público também pode acessar mais de cinco mil fotografias de Gautherot que estão disponíveis na base de dados do IMS.
Marcel Gautherot – Brasil: tradição, invenção
Curadoria: Sergio Burgi e Samuel Titan Jr.
Abertura: 13 de junho, às 18h30
Visitação: de 14 de junho a 20 de agosto de 2017 – Entrada gratuita
Local: Centro Cultural Paço Imperial
Praça XV de Novembro, 48 – Centro – Rio de Janeiro