Estranhos ao glamour com que se costuma olhar a vida em embaixadas brasileiras mundo afora, pelos menos dois escritores a serviço do Itamaraty tinham razões pessoais para sofrer do enfado de cidades europeias, do ramerrame burocrático dos escritórios, da convivência pouco estimulante de colegas e dos baixos salários, embora não pudessem reclamar do tempo disponível para escrever.
Diplomata que não gostava de reuniões sociais e que tinha medo de avião, na segunda metade da década de 1950 João Cabral de Melo Neto foi cônsul adjunto em Sevilha, o posto de seu coração. Mantinha a amizade com Otto Lara Resende, que estava no mesmo continente e, de certo modo, ligados pelo Itamaraty: Cabral seguindo carreira diplomática na capital andaluz, e Otto como adido cultural à Embaixada do Brasil em Bruxelas, ou a Bruxa, como ele preferia chamar a capital belga.
Do ponto de vista literário, o período foi fértil para ambos, que puderam trabalhar em suas respectivas obras. Enquanto o poeta, em Sevilha, escrevia poemas como o belo “A palo seco”, inserido em Quaderna, livro publicado primeiramente em Lisboa pela Guimarães Editora, em 1960, e só no ano seguinte, no Brasil, Otto fazia e desfazia versões de O braço direito, o livro de sua angústia permanente, lançado em 1963.
Da sevilhana Calle Lima 20, o poeta de Morte e vida Severina convidava o escritor e amigo para visitá-lo na cidade que amou tanto e que lhe inspiraria dois títulos: Sevilha andando (1990) e Poemas sevilhanos (1992). Tentava seduzi-lo ainda no final de 1956 com um cartão bem colorido em que se veem moças, uma delas à espera de alguém. Estímulo divertido para Otto, que se preparava para deixar o Brasil com destino a Bruxelas, o que de fato se concretizaria em abril do ano seguinte. Começaria a experiência de “adido e mal pago”, dizia ele.
Mas no final de 1958, com Otto já bem adaptado à Bruxa, e cogitando ocupar o lugar de Josué Montello, que deixaria Madri em 1959, chegou a hora de João Cabral mudar-se para o posto seguinte: Marselha, ou Merdelha, escreveria o poeta, irritadíssimo, pouco depois de chegar a essa cidade histórica. Não houve jeito, detestou-a, mas chegou a reconhecer que talvez a culpa não fosse exatamente do local, mas do fato de ele ter vindo de Sevilha, que adorava. Uma saída possível para aplacar o desgosto era viajar, por isso, em fevereiro de 1959, quando ainda nem tinha casa definitiva, ele planejava visitar Otto: “Marselha me deprime de tal maneira que sinto necessidade de fazer alguma coisa, e para mim, indivíduo de pouca valentia vital, esse alguma coisa é sempre uma fuga. Se eu for, telegrafarei. E se eu telegrafar, me reserve um hotel barato e vá me esperar”.
Não foi. No lugar de Bruxelas, tratou de ir a Monte Carlo em busca do “milésimo tratamento”, justificava, para a sua lendária dor de cabeça. Sem sucesso. Ocupou-se, então, de polir os poemas de Quaderna e propôs a Otto: “Se você puxar o seu original, eu puxo o meu”. Em pouco tempo, e finalmente bem instalado numa casa confortável, chegaram-lhe as folhas datilografadas da história contada pelo inspetor de órfãos Laurindo Flores no Asilo da Misericórdia. A leitura, feita com critério, mereceria comentários do modo como só um amigo de verdade pode fazer: com muita franqueza. Impressionou-lhe muito positivamente a “abulia e passividade” da personagem principal, mas achou longa a primeira parte do livro. A monotonia da vida do inspetor podia ser expressa em menos páginas, concluía: “Para ser monótono não é preciso ser extenso”, afirmava o remetente. A crítica que faz em carta de 4 páginas revela a sofisticação do leitor, seu aguçadíssimo espírito crítico e o enorme bem que devota ao amigo.
Na contramão do correio, ao receber os opiniões de Otto sobre Quaderna, responde ele, satisfeito:
V. fala do livro mais como uma paisagem do que como um livro (isto é, essa coisa que muita gente pensa que é feita só para transmitir e ensinar ideias, dar lições, etc.), o que, para meu conceito de poesia, poeta, poema, é tudo o que um autor pode desejar.
A vida naquela cidade portuária francesa tornava-se apenas suportável, mas a dor de cabeça não dava trégua. Em março de 1959, chegou a cogitar ir a Genebra com objetivo de aproveitar o último recurso que lhe restava para acabar com o penar: “cortar o gânglio de Gasser, coisa que me dá medo porque é preciso abrir a caixa craniana”, escrevia a Otto. Não consta que tenha ido. Em setembro desse ano, Otto, reinstalado no Rio de Janeiro, recebe carta do poeta com um pedaço da segunda folha cortada. A justificativa era esta: “(cortei o papel porque tinha escrito um parágrafo meio deprimido sobre a amizade. Afinal de contas, v. é uma das poucas pessoas no mundo de quem tenho recebido mais do que dado e seria injusto que esculhambasse a amizade a você!)”.
Apesar do sofrimento constante que as dores lhe causavam e do mau humor que ele mesmo proclama nas cartas ao amigo, sobretudo no tempo de Marselha, João Cabral celebrava a vida, e Otto, que a vivia com intensidade, conversador dos mais brilhantes, frequentemente falava na morte, como na entrevista a Edla van Steen: “Mas no fundo o único assunto é mesmo a morte. O resto é paisagem”.
Terá sido por esse tema, e particularmente pela última estrofe de “Pregão turístico do Recife” que Cabral lhe dedicou o poema? Depois de despir a capital pernambucana e o rio Capibaribe das vestes de Veneza Americana, de expor-lhes as entranhas nada belas, o poeta termina: “podeis aprender que o homem/ é sempre a melhor medida./ Mais: que a medida do homem/ não é a morte mas a vida”.
Dez anos mais tarde, quando João Cabral retornava a Barcelona e Otto voltava como adido cultural à Embaixada do Brasil em Lisboa, os dois se reencontraram no velho continente. Conservariam a amizade pelo anos seguintes, e em 1983, quando embaixador em Tegucigalpa, fazendo tratamento para depressão, da capital hondurenha escrevia o poeta: “Aqui vou, sem gosto pela profissão mas obrigado a segui-la até o fim por motivos financeiros”.
Seguiu-a mesmo, e só a deixou com a aposentadoria, em 1990. Viveu até 1999, portanto, mais que Otto, morto em 1992, aos setenta anos de idade.
Elvia Bezerra é pesquisadora de literatura brasileira e colaboradora no IMS.