Parte importante da história da primeira grande terra indígena demarcada no Brasil, o Parque Indígena do Xingu, está contada nos acervos do Instituto Moreira Salles. O IMS abriga arquivos de quatro fotógrafos que estiveram na região a partir da década de 1940: Alice Brill, Henri Ballot, José Medeiros e Maureen Bisilliat. Eles documentaram o fascínio e a violência do contato entre brancos e indígenas, a força e a beleza das culturas xinguanas, e a longa campanha em defesa do Parque, criado em 1961.
Essas imagens, porém, contam apenas parte da história: o ponto de vista dos forasteiros. No podcast Xingu: terra marcada, recém-lançado pela Rádio Batuta, o acervo do IMS foi ponto de partida para uma série de conversas que buscaram abordar também outros aspectos. Lideranças indígenas, antropólogos e pesquisadores falaram sobre como os povos xinguanos viram a chegada dos brancos às suas terras e como se mobilizam contra as ameaças que enfrentam há séculos, até hoje. As entrevistas no Xingu foram realizadas pelos cineastas Kamikia Kisedje e Takumã Kuikuro, que vivem em aldeias da região.
O terceiro episódio do podcast, Olhares, discute o papel da fotografia nesses conflitos. Partindo dos primeiros retratos de indígenas brasileiros, feitos em Paris em 1844, o programa percorre a história das múltiplas representações do Xingu. Desde os registros produzidos no século 19 por viajantes europeus, passando pela documentação de expedições enviadas pelo Estado no século 20 e pela intensa cobertura jornalística sobre a campanha pela criação do Parque, até a revolução desencadeada nos últimos anos por cineastas indígenas.
Reunimos aqui algumas imagens do Xingu presentes no acervo do IMS que são citadas nesse episódio. Você pode saber mais sobre elas escutando o podcast Xingu: terra marcada na Rádio Batuta ou no seu tocador favorito.
José Medeiros e Henri Ballot foram, ao lado de Jean Manzon, os principais fotógrafos enviados pela revista O Cruzeiro para acompanhar o trabalho dos irmãos Cláudio, Orlando e Leonardo Villas-Bôas na Expedição Roncador-Xingu e em seus desdobramentos, nas décadas de 1940 e 1950. O Cruzeiro transformou essa saga em um folhetim nacionalista, com toques de faroeste, alimentando o discurso do Estado de que a região central do país era um vazio demográfico que precisava ser conquistado pela “civilização brasileira”. As fotos de Medeiros (acima) e Ballot (abaixo), porém, muitas vezes marcaram um contraste com o discurso oficial, apontando as incongruências dessa ideia de progresso e transmitindo ao público a exuberância das culturas xinguanas. Esse movimento é discutido no catálogo da exposição As origens do fotojornalismo no Brasil: um olhar sobre O Cruzeiro (1940-1960), realizada pelo IMS em 2012, com curadoria de Helouise Costa e Sergio Burgi.
Maureen Bisilliat (fotos abaixo) foi ao Xingu pela primeira vez em 1973, a convite de Orlando Villas-Bôas. Ia passar cinco semanas para apurar uma reportagem, mas acabou fazendo várias visitas ao longo de cinco anos. Assim surgiu o livro Xingu: território tribal, de 1979, que registra os detalhes de ornamentos e pinturas corporais, os bastidores de rituais e festas, a coreografia de danças e lutas. Esse olhar também guia o documentário Xingu/Terra, de 1981, sobre o cotidiano em uma aldeia xinguana, com texto e narração de Orlando. Na Bienal de Arte de São Paulo de 1975, Maureen e Orlando organizaram a sala “Xingu Terra”, com fotografias, arte indígena e uma instalação emulando uma aldeia, coordenada por um jovem líder xinguano, Aritana Yawalapiti. Mais tarde, ele viria a se tornar o cacique de seu povo e uma das principais lideranças indígenas no Brasil. O trabalho na Bienal foi o começo de uma amizade de décadas entre Maureen e Aritana, que morreu em agosto de 2020, de Covid-19. Na época, o site do IMS publicou uma homenagem de Maureen a Aritana.
Maureen nunca deixou de acompanhar a situação no Xingu, como se vê na exposição Agora ou nunca – devolução: paisagens audiovisuais de Maureen Bisilliat, concebida pela fotógrafa e por Rachel Rezende para o IMS em 2020. O filme Xingu, 2020, produzido para a exposição, reúne imagens captadas ao longo das últimas quatro décadas. Um dos personagens é o cacique Aritana, que, numa entrevista de 2003, diz: “Chega de branco falar pelo índio, está na hora de o índio divulgar seus problemas, falar seus problemas”.
Essa declaração de Aritana encontra eco no trabalho de uma nova geração de cineastas indígenas. Um dos correspondentes do podcast no Xingu, Takumã Kuikuro participou nos anos 2000 do Vídeo nas Aldeias, um projeto que promoveu formação audiovisual para gerações de indígenas em várias partes do país. Logo Takumã criou o Coletivo Kuikuro de Cinema, com outros jovens da aldeia Ipatse, onde vive. O coletivo já produziu mais de uma dezena de filmes, entre ficção e documentário, e participa de festivais em todo o mundo. O trabalho de Takumã é exemplo do que a curadora Naine Terena, em entrevista ao podcast, descreve como uma virada recente na representação dos indígenas no Brasil. Ao se apropriarem das técnicas audiovisuais, os cineastas indígenas questionam as imagens produzidas pelos brancos desde o século 19 e transformam a câmera em instrumento de afirmação cultural e militância política. “Nossa arma era o arco e flecha”, diz Takumã no podcast, “hoje, é o audiovisual”. Em julho de 2020, ele filmou para o programa IMS Convida o curta Hiper-doença, sobre o combate à Covid-19 nas aldeias kuikuro.
Guilherme Freitas é editor-assistente da revista serrote e professor no curso de Jornalismo da ESPM-Rio. É criador e apresentador dos podcasts Xingu: terra marcada (2021) e Sertões: histórias de Canudos (2019), da Rádio Batuta.