Entre 1967 e 1972, a fotógrafa Maureen Bisilliat percorreu o Nordeste brasileiro, principalmente Ceará, Alagoas e Bahia, registrando suas paisagens, festejos, habitantes. Nascida na Inglaterra em 1931, e radicada definitivamente no Brasil no início da década de 1960, Maureen conseguiu capturar, em imagens, os contrastes e a beleza de um mundo rude e forte. Tal qual Euclides da Cunha fizera com palavras, décadas antes, em Os sertões, obra que constrói um retrato do país a partir da sangrenta Guerra de Canudos, ocorrida no sertão baiano entre 1896 e 1897. O casamento entre o olhar da fotógrafa e os trechos do relato clássico de Euclides é o livro Sertões: luz & trevas, publicado originalmente em 1982, que ganha uma nova edição, organizada pelo Instituto Moreira Salles, guardião da obra de Maureen Bisilliat desde 2003. O lançamento acontece na Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), que em 2019 homenageia o escritor.
Dia 12 de julho, às 19h, na Casa do IMS na Flip, a fotógrafa conversa com Marília Scalzo, coordenadora de comunicação e marketing do IMS, sobre o processo de criação do livro, enriquecido com dois posfácios nesta nova edição: um de Miguel Del Castillo, curador da Biblioteca de Fotografia do IMS Paulista e da exposição Fotografia e literatura nos livros de Maureen Bisilliat, e outro de Walnice Nogueira Galvão, professora emérita aposentada da USP, grande referência nos estudos da obra de Euclides da Cunha. Uma pequena exposição na Casa do IMS, no centro histórico de Paraty, reunirá algumas imagens do livro, que nasceu das andanças de Maureen pelo país com uma bolsa da Fundação Guggenheim, e também das viagens de garimpo de peças de artesanato popular para a galeria O Bode, da qual era sócia com o marido e um amigo.
Como observam Del Castillo e Walnice, as imagens registradas por Maureen não podem ser reduzidas a um simples acompanhamento para os trechos de Os sertões, selecionados por ela nas duas primeiras partes da obra de Euclides – intituladas “A terra” e “O homem”. “A imaginação artística da fotógrafa interpela os textos por canais inusitados, que vão do questionamento à crítica, passando pelo compartilhar de emoções, pela solidariedade aos seres humanos, pelo apego à Terra e a todos os viventes, pela empatia com os sertanejos, pelo respeito a suas crenças e a sua resistência inquebrantável”, escreve Walnice. Ao encontrar nas profundezas do Brasil, décadas depois de Euclides, praticamente o mesmo universo atravessado paradoxalmente pela desigualdade e pela perseverança, Maureen estabelece o diálogo, mantém a originalidade de seu olhar e faz, como lembra Del Castillo, “um trabalho poético e engajado”.
Curiosamente Euclides da Cunha não foi a primeira opção da fotógrafa. No início dos anos 80, com um punhado de fotos na bagagem, ela se encontrou em Recife com Ariano Suassuna, a quem pediu um texto para acompanhar aquelas imagens de um país que o escritor definia como “o Brasil real”. Empolgado, ele acabou escrevendo não um breve texto, mas um romance inteiro, que ainda trazia Maureen como personagem. Ariano só pediu que a obra, batizada provisoriamente de “A lanterna de Maurina e as visagens de Quaderna” fosse publicada na íntegra, o que seria impossível. Diante disso, a fotógrafa foi buscar o “sertão histórico de Euclides”. Uma das dedicatórias de Sertões: luz & trevas, porém, vai para “Ariano Suassuna, terceira ponta do triângulo literário, místico, telúrico, mítico e sertanejo – Euclides, Guimarães, Suassuna –, a quem fico devendo uma interpretação iconográfica à altura da sua obra”.
Entre retratos expressivos de homens, mulheres e crianças, cenas domésticas, paisagens, festas religiosas e populares – algumas imagens foram refotografadas e trabalhadas por Maureen com efeitos de luz e cor –, destaca-se o conjunto de sete fotos de vaqueiros, registrados em seus trajes tradicionais cor de terra. Nesse caso, as fotografias funcionam quase como uma ilustração para o texto de Euclides da Cunha, como um mergulho no tempo. “As vestes são uma armadura. Envolto no gibão de couro curtido, de bode ou de vaqueta; apertado no colete também de couro; calçando as perneiras, de couro curtido ainda, muito justas, cosidas às pernas e subindo até as virilhas, articuladas em joelheiras de sola; e resguardadas os pés e as mãos pelas luvas e guarda-pés de pele de veado - é como a forma grosseira de um campeador medieval desgarrado em nosso tempo”, descreve o autor, que exalta em muitos momentos a tenacidade e a força do sertanejo. “Fez-se homem, quase sem ter sido criança. Salteou-o, logo, intercalando-lhe agruras nas horas festivas da infância, o espantalho das secas do sertão. Cedo encarou a existência pela sua face tormentosa. É um condenado à vida”, observa Euclides, a quem Maureen, na apresentação do livro, chama de “testemunha mor do povo brasileiro, homem sóbrio e severo, arrebatado pelos desenfreios da paixão”.
As fotos dos vaqueiros foram as que “encantaram Suassuna”, conta a fotógrafa em entrevista para a série de podcasts Sertões: histórias de Canudos, que o IMS lançou para marcar sua participação na Flip. Nos cinco episódios, disponíveis no site da Rádio Batuta, a rádio de internet do instituto, e no canal do IMS no YouTube, o jornalista Guilherme Freitas, editor assistente da revista serrote, entrevistou uma série de estudiosos da obra de Euclides da Cunha, além de artistas, como Maureen, que trabalharam de formas distintas sobre o clássico. Segundo a fotógrafa, o rosto em close de um dos vaqueiros representava, para Suassuna, a força e a tragédia da vida.
Em seu posfácio, Miguel Del Castillo lembra que Maureen acredita, ao olhar para o livro hoje, ter escolhido instintivamente os trechos de Os sertões nos quais Euclides da Cunha se permitiu certos “voos”. “No meio de uma descrição mais longa e jornalística, em que o repórter e historiador falava mais alto, ele vem e faz uma síntese poderosa, de uma maneira que não é apenas mais poética que o restante, mas que cria de repente uma exultação. São voos, sobretudo”, afirma ela para Del Castillo. Ao escolher unir esses voos às suas imagens, aponta o curador, é como se Maureen Bisilliat conferisse à obra de Euclides uma dimensão que lhe faltasse, “criando um sertão real e mítico, profundo e passageiro, cotidiano e epifânico, triste e esperançoso, frágil e de uma força sem igual”.
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