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‘Quanto pode a amizade!’

14 de março de 2022
Francisco Iglésias (à esquerda) e Otto Lara Resende em fotos tiradas em suas respectivas formaturas em Belo Horizonte; a de Iglésias, em dezembro de 1944, a de Otto,  em dezembro de 1945

No início da década de 1940, o futuro historiador mineiro Francisco Iglésias, morador da Floresta, bairro distante do centro de Belo Horizonte, perderia o bonde se aderisse às caminhadas noturnas que sua turma fazia pelas ruas da cidade. Nem por isso ele deixaria de se reunir ao grupo de jornalistas e escritores que, naquela época, despontava como a nova geração intelectual de Minas, de que fazia parte o quarteto mineiro composto por Otto Lara Resende, Fernando Sabino, Hélio Pellegrino e Paulo Mendes Campos.

Com Otto, Iglésias firmaria sólida amizade, cuja história se reflete na correspondência que trocaram durante décadas, conservadas em seus arquivos, ambos hoje sob a guarda do IMS: o de Otto preserva as 171 cartas enviadas por Iglésias, que fazem dele seu segundo interlocutor mais assíduo, atrás apenas de Dalton Trevisan, enquanto no de Iglésias acham-se as 185 recebidas do autor de O lado humano.

Não é difícil imaginar o sentimento de Otto que marcava essa correspondência: o amor por Minas Gerais. Exilado do estado natal desde 1946 para se firmar como jornalista e escritor no Rio de Janeiro, era por meio de Iglésias, enraizado em Belo Horizonte, que se religava à sua origem, e o vínculo se fortalece quando os demais integrantes do quarteto mineiro já estão todos morando na então capital federal. Contrariando, portanto, o espírito migratório de sua geração, Francisco Iglésias, nascido a 28 de abril de 1923, em Pirapora, jamais deixaria Minas por muito tempo, opção que revela sua inabalável fidelidade àquela região montanhosa; não por acaso, viveria cerca de sessenta anos na casa da rua Pouso Alegre 1848. “Sou e me prezo de ser mineiro”, afirmaria o segundo filho de José Iglésias Casal e Maria Josefa Romero Fernández Iglésias, imigrantes originários da Espanha.

Entre 1946 e 1947, durante pouco mais de um ano, Iglésias chegou a morar em São Paulo, aonde fora trabalhar como gerente da livraria Jaraguá a convite de Alfredo Mesquita. Nem a amizade com o professor e crítico literário Antonio Candido, de quem se aproximara nesse período, faria com que permanecesse na capital paulista. E Otto, mais de uma vez, insistirá: “Por que você não vem para o Rio?”, pergunta em carta de 19 de maio de 1948 – ao que Iglésias poderia responder, recorrendo à frase do poeta Jacques do Prado Brandão: “Mineiro que fica em Minas é porque tem defeito de fabricação. Não é exportável”, registra Humberto Werneck em O desatino da rapaziada.

Antes de sua temporada paulista, Iglésias, aos 22 anos de idade, se reunira a jovens escritores para fundar a revista literária Edifício, da qual era redator, junto com Otto. Dela também participaram Autran Dourado, Sábato Magaldi, Wilson Figueiredo e outros “novíssimos”, diria Alceu Amoroso Lima. O periódico mineiro, cujo título evoca o poema “Edifício Esplendor”, de Carlos Drummond de Andrade, circulou de janeiro a junho de 1946, em quatro números, nos quais se encontram artigos de Iglésias, “rapaz alto, muito magro, que pega sempre o último bonde Horto”, descreve autor anônimo em perfil do redator publicado no número 2.

A convivência com poetas, ficcionistas e críticos, as leituras, as afinidades intelectuais, “tudo indicava que eu devesse estudar Literatura”, diria Iglésias anos mais tarde. Ele, no entanto, optou por outro caminho: em 1945, licenciou-se em História na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de Minas Gerais, depois UFMG, onde faria carreira acadêmica como professor da Faculdade de Ciências Econômicas. Sua obra, portanto, resulta da atividade como professor de brilho notável e historiador de economia e política brasileiras, autor de A revolução industrial (1981) e Trajetória política do Brasil (1993), entre outros, parte de um trabalho intelectual que deu corpo a quase dois mil registros, entre plaquetes, prefácios, introduções etc.

Mesmo sem se dedicar ao estudo da literatura, Iglésias a manteria no horizonte de suas atividades. Como a correspondência com Otto revela, na década de 1940, ele fizera planos que incluíam a ficção: com o amigo, compartilhara ideias para contos e um romance. “Se fizer alguma coisa, só poderá ser um romance. Nada tem sentido fora da ficção”, afirmaria ele em 16 de maio de 1947. “Você é capaz, sim. Faça o romance. Creio em você”, incentivaria Otto em 12 de junho daquele ano. O romancista não vingou, e, na velhice, confessaria a sua frustração, em 28 de julho de 1989: “Queria ser escritor: não sou, apesar da minha insistência e da insistência dos outros”. Ele, contudo, faria da literatura tema de seus textos, como os que tratam de poesia, a que dedicava um lugar privilegiado. Seus ensaios sobre Fernando Pessoa e Carlos Drummond de Andrade, por exemplo, revelam um escritor de fino exercício crítico.

À sua produção ensaística, reunida nas coletâneas História e ideologia (1971) e História e literatura (2010), somam-se os inúmeros artigos que escreveu para a imprensa, colaboração iniciada ainda em 1943. Remontam a esse ano os primeiros textos que publicou nos periódicos belo-horizontinos, dentre os quais O Diário e O Libertador, jornal clandestino do PCB. Por intermédio de Otto, que se declarava “uma verdadeira agência de artigos”, Iglésias também chegaria à imprensa carioca: “Pode mandar o estudo sobre [André] Malraux, que coloco para você na Rev. Bras. [...] E mande outro para o Diário de Not., onde posso agir”, assegura Otto em carta de 12 de junho de 1947.

Francisco Iglésias (centro) entre Antônio Candido (à esquerda) e e Jurandir Ferreira na inauguração do IMS Poços, 1992. Autoria não identificada. Acervo Otto Lara Resende/ IMS

 

O diálogo epistolar entre Otto e Iglésias expõe uma relação de respeito e bem-querer mútuos, definidores de uma amizade que vai muito além do papel para se concretizar nos vários encontros que terão durante toda a vida, no Rio ou em Minas. Por características de temperamento, talvez, há momentos em que, apesar de próximos, um certo distanciamento parece os impedir de aprofundar a intimidade cultivada na correspondência: “Sua carta me autoriza a crer que continua temendo o fantasma de você mesmo – e por isso você dá notícias sem estar instalado no coração delas”, reclamará Otto, em 17 de junho de 1950, sempre desejoso de mais revelações.

Ainda assim, aí estão dois amigos de corpo inteiro – amizade sólida, como já se disse aqui, mas que também conheceu seus reveses. Em Bruxelas, aonde chegara em 1957 para trabalhar como adido cultural à Embaixada do Brasil, Otto ansiava por rever o amigo, que visitava Paris desde 6 de fevereiro de 1958. Iglésias, viajando depressa, num roteiro que incluía muitas cidades, não iria ver Otto na capital belga, mas privilegiaria o encontro com o químico mineiro José Israel Vargas, em Londres.

Magoado e irônico, Otto escreve em 13 de fevereiro daquele ano: “[...] você rouba um dos seus cinco dias de Paris para ir a Londres, ver um ‘querido amigo’. Quanto pode a amizade! Meus parabéns”. Em resposta, Iglésias também sobe o tom: “‘Nossa camaradagem’ provinha mais de meu apreço por V., de minhas contínuas procuras de seu convívio, meu interesse por sua pessoa e suas coisas. Posso falar na recíproca de sua parte?”, pergunta ele em carta de 19 de fevereiro.

A raiva dura pouco: dias depois, Otto se retrata, ciente de que se sua carta, “escrita em cima da bucha, ao primeiro movimento de exaltação”, fora “antipática, irritante e até grosseira”, admite ele em 21 de fevereiro. “Foi, porém, uma reação franca”, frisa, para em seguida disparar: “Amizade é como esmola: pouca ou muita, não se recusa”.
A franqueza, aliás, será recorrente nessa correspondência. Dela Otto se valerá para transitar de um estado a outro, da raiva à placidez, como se lê em carta de 22 de dezembro de 1958, depois de saber que Iglésias se acidentara e ficara vários dias em coma. Para confortar o amigo, abatido e preocupado com sua saúde, escreve ele:

Pouco importa que v. não tenha fé. Deus não pode esquecer Você, pois não há no mundo tantos Francisco Iglésias que ele possa se passar de um, exatamente esse que está em Belo Horizonte, e que para ter fé não precisa mais do que da Graça, pois já é cristão pelo batismo e pelas virtudes do coração e do espírito, pela pureza, pela generosidade, por todas as imensas qualidades que Você tem – e permita que lhe diga assim de cara, porque é o que penso e não foi preciso Você quebrar a cabeça para eu assim pensar (v. sabe disso).

Para além das experiências difíceis, os dois amigos irão compartilhar momentos de sucesso de suas respectivas carreiras. Leitor crítico da obra de Iglésias, Otto dele precisou quando foi eleito para a Academia Brasileira de Letras e lhe pediu sugestões de leitura para escrever o discurso de posse, que seria em 2 de outubro de 1979. Meses antes, em carta de 7 de agosto, solicitara: “Desculpe chateá-lo com isto, mas, se for possível, help me. Como sabe, não tenho pretensões a sábio nem a erudito, que não sou. Sou um jornalista, um curioso disperso, um especialista em ideias gerais”.

Se Iglésias se entusiasmou com os louros de Otto, dali a algum tempo, em 1984, será a vez de o acadêmico testemunhar o reconhecimento de que o professor gozaria: aos 61 anos de idade, ele receberia o título de professor emérito da Faculdade de Ciências Econômicas da UFMG, que o admitira ainda em 1949. A homenagem coroava os seus muitos anos de dedicação à universidade, assim como sua produção, que enriquece a historiografia brasileira. Sobre o seu discurso de outorga de título, Otto resumirá em carta de 2 de agosto de 1989: “é esplêndido, tem nervo, emoção, experiência, sabedoria na medida certa”. E, como se Iglésias duvidasse de seu mérito, o interlocutor será definitivo: “O que v. colhe e tem colhido é merecidíssimo, veja em torno”.

Assim dizia porque acompanhava de perto o trabalho do historiador, especialmente em dois livros: Un estadista del Imperio y otros textos (1991) e Trajetória política do Brasil (1993). No primeiro, sobre Joaquim Nabuco, Otto interveio com palpites na introdução do volume, organizado por Iglésias e publicado na Venezuela pela Biblioteca Ayacucho – “Pena de fato que seus pais não estejam aí pra ver v. brilhar em Castilla e adjacências”, diria ele em carta de 1992. Do segundo, foi entusiasta: “Faça o livro para o L[uiz] Schwarcz! Vale a pena”, insistia, na mesma carta, com um Iglésias ainda hesitante.

Leitor de textos de muitos de seus amigos, Otto nem sempre obteve deles o mesmo empenho, com exceção de Iglésias, a quem confidenciara em 29 de junho de 1989: “nunca nenhum amigo leu um original com um mínimo de atenção”. Naquele ano, Otto trabalharia compulsivamente na reescrita de seu único romance, O braço direito, publicado originalmente em 1963 pela Editora do Autor – “Estou despiorando, aliás, tentando despiorar”, diria, com seu habitual bom humor. As angústias causadas por essa quarta versão do romance, publicada dois anos mais tarde pelo Círculo do Livro, seriam frequentemente divididas com Iglésias. Em carta de 1989, escreve Otto:

A luta com o bd tem me posto muito irritado, irascível, as dúvidas, a insônia, os sustos no meio da noite, os fantasmas, o desejo incoercível de mudar o rumo da ficção, as interferências com novas sugestões e “inspirações” que me aparecem nas horas mais estranhas e me levam a tomar notas infindáveis... [...] Chico, nunca ninguém deveria sofrer tanto por tão pouco! Um romancinho só, uma merdinha de nada, e este martírio!

A correspondência, contínua e numerosa, vai até 1992, ano da morte de Otto, em 28 de dezembro; Iglésias faleceria em 21 de fevereiro de 1999. A leitura desse conjunto fornece, pois, o retrato de dois amigos da vida inteira, e confirma o que Iglésias dissera a Otto em 12 de novembro de 1947: “A base em que assentar nossa amizade é mais sólida do que a terra no coração dos continentes”.

Sávio Alencar é editor e pesquisador de literatura brasileira, mestre em Letras pela Universidade Federal do Ceará.


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