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Elegância, sabedoria e bom humor

12 de março de 2020

Discreto mas extremamente charmoso, dono de um saber de amplo espectro, que ia da ciência à história, da economia à literatura, Sergio Goes era uma pessoa com qualidades raras. Talvez por isso, a elegância dos modos, o apreço pelo conhecimento e o bom humor admirável sejam prontamente lembrados por todos que com ele conviveram. Morto em 15/2, em consequência de um câncer no pâncreas, o coordenador do Acervo Walther Moreira Salles deixou no IMS um lastro de brilhantismo no trabalho e de sólidas amizades.

Sergio Goes de Paula chegou ao IMS em 2014 através do jornalista e historiador Jorge Caldeira, cuja empresa, Mameluco, havia sido contratada para digitalizar e organizar o acervo do embaixador Walther Moreira Salles. Os dois eram amigos de longa data, e já haviam trabalhado juntos em outros projetos, como o livro e CD-Rom Viagem pela História do Brasil. Quando Caldeira deu por encerrado o trabalho, Sergio foi convidado a continuar no instituto, como consultor e coordenador do Acervo WMS.

E surpreendeu Flavio Pinheiro, diretor executivo do IMS à época: "Era dotado de fina ironia e de uma inteligência ao mesmo tempo pacata e inquieta. Tinha muito humor. Um jeitão boêmio e afável", relata. "Talvez por isso eu não imaginava que fosse tão organizado. Sergio construiu uma estrutura para o acervo firme e vertebrada. Sonhava em ver o acervo mais difundido, já que o embaixador transitou pela vida empresarial, cultural e diplomática e era um personagem do grand monde, com amigos e relações em toda parte."

Sergio pôs de fato as mãos naquela imensa massa de informações, que reúne cartas, bilhetes, relatórios, documentos, livros, farta quantidade de fotos. Trabalhou para difundir em profundidade, no site do IMS, assuntos que garimpava nos arquivos do patrono. Levam a assinatura dele posts importantes para dar visibilidade ao acervo que coordenava através da página dedicada ao embaixador. Escreveu sobre João Moreira Salles, pai de Walther Moreira Salles, produziu uma série sobre Walther Moreira Salles e os museus, e um post sobre a viagem de Elisa Moreira Salles à China de Mao em 1966. Seu interlocutor era o coordenador de Internet do IMS, Alfredo Ribeiro, que ajudava a dar forma às ideias do novo colega, rapidamente transformado em amigo.

"Conheci o Sergio assim que ele chegou ao IMS e viramos amigos de infância aos cinco minutos da nossa primeira conversa sobre o aproveitamento no site de conteúdos do acervo WMS", conta Alfredo. "O humor estava na base da nossa simbiose. Sergio tinha a virtude de não precisar se levar muito a sério para resolver questões por vezes sérias. Nem a doença tirou a leveza de seu olhar para as adversidades da vida. Morreu sem querer incomodar os amigos com seu sofrimento. Em um dos últimos diálogos que me consentiu pelo celular, pedi notícias sobre a 'guerra' contra o mal que o definhava. 'Estamos perdendo, parceiro!' –  resumiu, para me poupar dos detalhes de suas batalhas."

Alfredo observa que os prazeres da vida sempre foram seus assuntos preferidos  – vinho, viagens e o convívio com a neta Luiza, a enteada Tatiana e a mulher Viviane, "seus grandes amores".

"Eram as suas três louras", diz Elvia Bezerra, outra colega transformada imediatamente em amiga. Coordenadora de Literatura do IMS até dezembro de 2019, Elvia identifica com clareza um dos pilares da elegância que o caracterizava: a capacidade de escutar o outro. "E sabia ouvir mulher. Interessava-se, compreendia. É tão difícil ter uma pessoa que se transporta para o lugar do outro! Durante a pandemia, com a doença adiantada, me ligava toda semana, porque sabia que eu estava sozinha, preocupava-se com isso."

Elvia conta que o amigo conversava muito sobre a vida, em geral, e do trabalho no IMS, mas pouco citava de sua monumental vida pregressa no campo profissional.  "Eu mesma não sabia do tanto de coisas que ele havia feito, mas era um homem muito preparado, viajado, leitor de clássicos." Da última vez que se falaram – falavam-se pelo menos uma vez por semana – era noite de lua, e ela recitou ao telefone um poema de Manuel Bandeira, Satélite, que sabe de cor: "Fim de tarde./ No céu plúmbeo/ A lua baça/ Paira".

Depois da partida de Sergio, ela conta ter recebido tantas mensagens de condolências que chegou a comentar com Viviane: "As pessoas devem achar que a gente tinha um caso". "Mas vocês tinham" retrucou a companheira de Sergio, atestando a sólida amizade dos dois.

"Era uma pessoa brilhante. Sua presença era uma garantia de objetividade e equilíbrio em nossas reuniões, sua inteligência tornava tudo mais simples."
Bia Paes Leme

A leveza com Sergio que encarava tudo, mesmo os temas mais árduos, era motivo de admiração entre colegas e amigos. Como coordenador do Acervo Walther Moreira Salles, ele integrava o Conselho de Acervo de IMS, formado para fomentar as trocas entre as diversas áreas do instituto e estabelecer linhas de atuação comuns. Também integravam o grupo Elvia, Sergio Burgi, coordenador de Fotografia, Bia Paes Leme, coordenadora de Música, Julia Kovensky, coordenadora de Iconografia, e Gabriel Moore, que até meados de 2020 ocupava o cargo de Gestor de Acervos.

"Era uma pessoa brilhante", afirma Bia. "Sua presença era uma garantia de objetividade e equilíbrio em nossas reuniões, sua inteligência tornava tudo mais simples. Isso sem falar na pessoa encantadora que ele era, bom amigo, bom papo… E tinha clareza para enxergar as coisas. Era, por um lado, muito consciente, muito pé no chão, conversávamos sobre Brasil, política. Mas ao mesmo tempo muito leve."

Sergio Burgi corrobora: "Por sua personalidade e afabilidade, Sergio sempre manteve à distância  qualquer tensão ou desassossego que eventualmente se aproximassem de nós, evitando que nos desviássemos dos nossos focos de interesse durante as boas conversas que mantivemos nestes tempos de trabalho e  companheirismo no IMS. Foram conversas sempre intensas, focadas em questões de construção de sentido para nossas ações na instituição e pela instituição. Sua gentileza, argúcia e profundo interesse pela história, pelo conhecimento, e também pelo outro, sempre me marcaram profundamente."

Gabriel Moore lembra o acolhimento de Sergio quando chegou ao IMS em 2016, vindo de São Paulo: "Seu amor pelo Rio e paixão pela boa gastronomia ajudaram um paulista quadrado, recém-chegado e meio perdido a entender e compartilhar o melhor da alma carioca. Pra mim ele  será sempre o incansável investigador da trajetória do embaixador e o guardião maior de seu acervo. Seu olhar aguçado e humor adorável já fazem uma tremenda falta em tempos tão difíceis de barbárie generalizada."

"Era o  típico carioca bon vivant, mas com conteúdo", concorda outra paulista, Maria Silvia Lavieri Gomes, também no Acervo WMS. "Tudo o que se propunha a fazer era com profundidade, nunca superficial". Silvinha, como é conhecida, chegou ao instituto pelo mesmo caminho que Sergio, através da produtora de Jorge Caldeira, e, como ele, acabou ficando, integrando sua equipe. "Ele era muito humano, escutava muito, era prático e dedicado, se envolvida muito com conteúdo", conta ela.

Para a série publicada no site sobre Walther Moreira Salles e os museus, Sergio realizou uma várias entrevistas com diretores de instituições, curadores e  artistas. Também entrevistou alguns executivos que trabalharam com o embaixador e adicionou estes depoimentos ao acervo.

"Seu olhar aguçado e humor adorável já fazem uma tremenda falta em tempos tão difíceis de barbárie generalizada."
                                                                                                                                                             Gabriel Moore

Essa estima pela pesquisa e pela história sempre o acompanhou. Sergio se formou em Economia pela UFRJ, com mestrado em Ciências Sociais na USP e doutorado em Ciência Econômica na Unicamp. Ingressou cedo na Escola Nacional de Saúde Pública, ligada à Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), no então inovador Departamento de Ciências Sociais. Fez uma carreira impressionante. Foi um dos criadores, em 1994, da revista História, Ciências, Saúde – Manguinhos, publicação precursora no campo da História das Ciências e da Saúde no Brasil, que editou por muitos anos, e pesquisador na Casa de Oswaldo Cruz, o centro de documentação histórica da Fiocruz. Numa passagem pela Finep, coordenou junto a Sergio Arouca (este pela Fiocruz), o Programa de Estudos Socioeconômicos em Saúde (Peses) na Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP/Fiocruz) na década de 1970. Ele também esteve à frente do Programa de Estudos Populacionais e Epidemiológicos (Peppe) da Escola. E foi ainda, de 2002 aa 2006, presidente do Iser – Instituto de Estudos da Religião.

Escreveu livros como Saúde e Previdência: estudos de política social, em parceria com José Carlos de Souza Braga (Hucitec, 2006), Morrendo à toa: causas da mortalidade no Brasil (Ática, 1991), e   ...e o sertão de todo se impropriou à vida..., com César Benjamin, um estudo sobre a fome e a seca no Nordeste (Vozes, 1986). Organizou os volumes Hipólito José da Costa (Ed 34, 2001) da Coleção Formadores do Brasil, e Um monarca na fuzarca: três versões para um escândalo na corte (Relume Dumará, 1993).

"É interessante que ele tenha trabalhado em duas instituições tão diferentes, como a Fiocruz e o IMS, mas que têm em comum a atuação na produção do conhecimento, da criação."
Eduardo Costa

Foi na ENSP, em 1968, que começou a tecer uma de suas amizades mais longevas, com Eduardo Costa, na época cursando o mestrado na instituição. Médico, professor e secretário da Saúde do Rio no governo Leonel Brizola, Eduardo foi seu parceiro em numerosos projetos e testemunha  da importante trajetória de Sergio no estudo da saúde pública e questões sociais do povo brasileiro.

"É interessante que ele tenha trabalhado em duas instituições tão diferentes, como a Fiocruz e o IMS, mas que têm em comum a atuação na produção do conhecimento, da criação", diz ele, que lista predicados do amigo, com quem compartilhou o mesmo carro, a paixão pela marcenaria (Sergio mantinha uma oficina em casa) e pelas coisas do Brasil. "Era um homem culto, com vários campos de interesse. Gostava do conhecimento. E ainda era boa pinta, charmoso, bem relacionado. Mas não tinha esnobismo algum. Era de uma retidão inabalável."

Colega na Casa de Oswaldo Cruz, a historiadora Angela Porto destaca a sua inquietude e a constante busca por novidades. "Ele tinha ideias brilhantes, queria fazer coisas inéditas, sair da mesmice das pesquisas", lembra-se. Tanto que uma das primeiras coisas que propôs a ela, ao chegar ali, foi vasculhar a Biblioteca Nacional em busca de textos inéditos que pudessem ser de interesse para pesquisadores.

Depararam-se, por exemplo, com um manuscrito do século 18 de Alexandre Rodrigues Ferreira, chefe da Expedição Filosófica que percorreu por nove anos as regiões Norte e Centro Oeste do país. Enfermidades endêmicas da capitania de Mato Grosso, que seria publicado pela Fiocruz em 2008  em parceria com a Faperj, ou Do clima e das doenças do Brasil, do médico francês Xavier Sigaud, em cuja tradução comentada estava trabalhando quando chegou ao IMS – Angela, a seu pedido, finalizou a tarefa e publicou o volume pela Fiocruz. "Era uma pessoa incrivelmente simpática, sedutor e inteligente. Reuniões de  departamento podem ser bem chatas, as pessoas se disputam, mas ele não estava nem aí para essas picuinhas."

Sergio definitivamente não era de picuinhas, de mal-estar. O homem de fartos cabelos grisalhos, que frequentemente deixava crescer bastante, e que caíam em ondas  – "uma verdadeira humilhação", diz Elvia – era adepto dos prazeres, da leveza, da boa companhia à mesa. Era comum o vinho no fim de um dia de trabalho, um café com bolo durante pequenas reuniões, o jantar de praxe com os amigos do IMS. "Mesmo perto de Manguinhos, ele sempre achava um lugar interessante para comer", conta Angela. Eduardo Costa, que o visitou nos últimos dias, conta que Sergio manteve o paladar apurado até o fim – em sua última visita, levou para ele um ceviche que aprendera a fazer na Amazônia peruana, numa longínqua viagem de pesquisa com o amigo.

Série escrita por Sergio Goes para o site do IMS