Na crônica “A arte de ser avó”, Rachel de Queiroz escreve que “netos são como herança: você os ganha sem merecer”. Você pode amá-los “com extravagância”, admite ela, certa de que vêm para nos compensar “de todas as mutilações trazidas pela velhice”.
Otto Lara Resende não chegou a teorizar sobre o assunto, mas derretia-se diante do “puxa-saquismo barato” com que a neta Caetana o tratava. E Guimarães Rosa, esse amou intensa e docemente Vera e Beatriz Helena Tess, que não eram suas netas biológicas, mas adotadas. Como Vera demorasse muito a falar, e aos três anos se limitasse a apontar para os objetos dizendo apenas ooó, o autor de Grande sertão: veredas a chamava de Ooó do Vovô. Morando no Rio e ela em São Paulo, ele lhe enviou vários cartões entre 1966 e 1967. São tantos os carinhos, os diálogos imaginários com a neta, os desenhos que incluem trens carregados de beijos, que o precioso material foi recolhido e publicado pela Edusp/Imprensa Oficial do Estado/PUC Minas em 2003 com o título Ooó do vovô. “O maior escritor brasileiro do século XX”, como o definem categoricamente Antonio Candido e José Mindlin no prefácio, surpreende os leitores de sua magnífica obra.
Outro que manifestou carinho aos netos foi Carlos Drummond de Andrade. Sua última composição, “Elegia a um tucano morto”, de 1987, foi escrita para o neto Pedro como uma espécie de consolo para o menino triste com a perda da ave que ganhara de presente havia pouco tempo. Foi ainda no belo poema “A Luís Maurício, infante” que o poeta homenageou o segundo dos três netos que lhe deu Maria Julieta, sua única filha, nascida em 1928.
Mas avós não literatos também são capazes de expressar seu amor ou lições em cartas ou bilhetes, ainda que com extrema simplicidade, como foi o caso de Julieta Augusta Drummond de Andrade, mãe do poeta. Ela não passava dos dezesseis anos de idade quando se casou com Carlos de Paula Andrade, de quem o autor de A rosa do povo, o nono dos quatorze filhos do casal, herdou o primeiro nome. O pouco estudo feito no Mosteiro das Macaúbas foi a única base intelectual de que se serviu a adolescente Julieta para tratar da educação da numerosa família que constituiria. Se não pôde receber uma formação aprimorada em francês ou música, como era usual na Itabira de seu tempo, não lhe faltou grandeza para desempenhar a tarefa de mãe e provedora, de acordo com os valores da época, como se entrevê no poema do filho-poeta, “A mesa”:
[...]
Oh que ceia mais celeste
e que gozo mais do chão”
Quem preparou? que inconteste
vocação de sacrifício
pôs a mesa, teve os filhos?
quem se apagou? quem pagou
a pena deste trabalho?
quem foi a mão invisível
que traçou este arabesco
de flor em torno ao pudim,
como se traça uma auréola?
[...]
De seus ensinamentos, pelo menos três comovem pela nobreza e simplicidade, e constam de um pedaço de papel em que o filho anotou, sob o título “Recomendações da mamãe”: 1. Não guardes ódio de ninguém. 2. Compadece-te sempre dos pobres. 3. Cala os defeitos dos outros”.
Nos lábios finos, no olhar apreensivo, Julieta Augusta mostrava certa fragilidade psicológica que se traduzia numa doçura triste, o que não significa dizer que, em algum momento, tenha negligenciado o papel de mãe. Desde 1934, quando Drummond veio para o Rio, ela lhe escrevia regularmente. São 198 cartas suas, hoje digitalizadas e guardadas no arquivo do filho, no Instituto Moreira Salles. Cartas essencialmente noticiosas de um mundo muito seu: o familiar. Mais ou menos no mesmo tom, ela escreveria à neta Maria Julieta, naturalmente com menos detalhes de seu estado de saúde precário e de sua melancolia permanente.
É o próprio Drummond que, em O observador no escritório, resume, em relação às cartas que dela recebeu:
Há em todas um profundo lamento: do ser apegado à família por intenso amor, aguçado pela separação ou experimentado no desentendimento passageiro. [...] Fico observando, aqui e ali, a delicadeza de suas expressões, o subentendido discreto de umas, a veemência afetiva de outras, o espírito bem formado e seguro das razões morais de sua vida, em que eu ainda não atentara bem, acostumado como estava a encontrar nela apenas o ente sensível e romântico.
Desde 1931, após a morte do marido, Julieta Augusta passou a morar em um apartamento no Hospital São Lucas, em Belo Horizonte, onde sofria de muitas dores e angústias frequentes. Ali recebia a visita dos filhos e netos, inclusive a de Drummond, que ia vê-la mais de uma vez por ano. Ao nascer Maria Julieta, em 4 de março de 1928, o poeta, que nesse ano publicava o seu famoso “No meio do caminho” na Revista de Antropofagia, convidou a mãe para ser madrinha da recém-nascida.
Maria Julieta receberia da avó não só o nome, mas fidelidade notável. No cartão de visita com o nome Julieta Drummond de Andrade gravado, a avó registrava parabéns nos aniversários da neta, mandava votos de bom Natal e Ano-Novo com uma singeleza desconcertante para uma mulher que fora mãe quatorze vezes e pôde ver uma procissão de netos.
“Um beijinho cheio do meu maior carinho e uma bênção da tua dindinha sempre amiga do coração”, escrevia ela em 1934, quando a menina tinha seis anos. Sem se julgar merecedora, dizia, em outra ocasião: “Eu não mereço o lindo corte que você me mandou”, em agradecimento ao tecido que ganhara de presente de Maria Julieta em um de seus aniversários, em 20 de maio. Em 26 de maio de 1940 escrevia à neta, em linguagem quase protocolar: “Penhorada agradeço o telegrama que me enviou pelos meus 71... pelo delicado presente, que Deus lhe pague”. Ou “Muito agradeço o bom perfume que V. teve a gentileza de me mandar”. Era raro demonstrar um afeto mais descontraído, embora o sentisse, evidentemente, e se isso acontecia, vinha acompanhado de uma desculpa: “a tua benevolência desculpará as costuras e grandes defeitos deste guardanapo, que usarás quando tomares caldo de feijão”.
Dedicar carinhos cotidianos a cada neto era, para essa avó, continuidade de uma missão que ela exerceu com responsabilidade exemplar. Mas como são tristes suas cartas e seus bilhetes. Como são cheios de desalento os seus delicados cartões. Que mistério esse de uma existência povoada de descendentes, mãe e avó cercada da família a que dedicou toda a sua vida e, ao mesmo tempo um ser tão sem esperança. Acompanhada de perto pelo filho José, no apartamento do São Lucas, ela não teve a paz esperada na velhice e quis buscá-la em Itabira do Mato Dentro, no último ano de vida, na casa do filho Vivi e da nora Ita, onde morreu em 29 de dezembro de 1949, no mesmo ano em que a afilhada, aos 21, se casou com o advogado e escritor argentino Manuel Graña Etcheverry.
Elvia Bezerra é pesquisadora de literatura brasileira e colaboradora no IMS.