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Caderno de inspiração: Ana Cristina Cesar

16 de junho de 2014

Dentre os muitos cadernos do acervo pessoal de Ana Cristina Cesar, está um que ela própria intitulou “Poesia e inspiração minha”. Ana começou a escrever ali em 1962, quando tinha apenas 10 anos, e os últimos registros vão até 1968. Portanto, são seis anos de escrita poética em processo de amadurecimento distribuída por quase cem páginas. E, de tão ricas, cada uma delas renderia um post (Ana, você é fértil).

Original do poema “Protuberância”, de 1 de agosto de 1968. Arquivo Ana Cristina Cesar / Acervo IMS

 

 

Percebe-se que sua atividade da escrita era frenética e constante. Não apenas do ponto de vista criativo, mas, sobretudo, crítico. Ana Cristina Cesar parecia ser implacável com sua produção. Relia, alterava, corrigia e comentava. Dentre as anotações, algumas sem qualquer perdão: “horrível”, “uma farsa”, “não presta”, “não gosto”, “razoável”, “+ –”, “besta”, escrevia ela nas bordas dos cadernos. Cada modificação tem data, o que possibilita ao pesquisador traçar uma relação entre a cronologia pessoal e o desenvolvimento poético. Ana mesma, em poema de outubro de 1965, aponta uma “transação”, uma “nova fase”. Antes dos 14 anos, já dominava os elementos estilístico-formais ao construir sonetos e versos em redondilha maior e menor, corrigindo aqueles que fugiam à métrica.

 

Original do poema “Chove”, de 11 de outubro de 1965, com as anotações de Ana Cristina. Arquivo Ana Cristina Cesar / Acervo IMS

 

O caderno, com rasuras, rasgos e canetas coloridas, é pura vida. Ana atribuiu a cada folha uma letra do alfabeto que, naturalmente, acabaram muito antes da última página. O sistema adotado para marcação das folhas não seria trivial. No canto superior esquerdo, notam-se sílabas soltas. Numa folha lê-se “ven”, na seguinte “tre”, depois, “li”... Até que reunidos todos os pedacinhos, em sequência, formam-se as seguintes sentenças: ventre livre, libertação dos escravos, menores que nascessem daquela data em diante, lei áurea. Em se tratando de Ana Cristina, uma marcação de folhas não podia ser apenas simples.

O tratamento minucioso tanto com a poesia quanto com o objeto em si (o caderno se assemelha a um livro com título, folha de rosto, paginação e índice) anuncia a profissional de letras que Ana seria. Chama atenção seu conhecimento sobre os artifícios de edição. Na página 84, há projeto de capa para dois livros feitos pela própria Ana: Antologia poética de Ana Cristina e Obras completas de Ana Cristina. Este último seria um “fac-símile da obra póstuma a ser publicada em 1969” –, registrou. A anotação é de 6 de abril de 1968.

 

Projetos de capas para os livros Antologia poética de Ana Cristina e Obras completas de Ana Cristina. Arquivo Ana Cristina Cesar / Acervo IMS

 

De fato, ela só publicaria em 1972, ao lançar Cenas de abril e Correspondência completa, ambos editados de forma independente dentro do contexto da poesia marginal. No entanto, esses primeiros títulos não foram, a rigor, seus primeiros livros; Ana Cristina Cesar já carregava vasta experiência poética forjada no anonimato dos cadernos de infância e de adolescência trabalhados com natural talento editorial.

 

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Elizama Almeida é assistente cultural da Coordenadoria de Literatura do IMS.

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