Carolina Maria de Jesus foi uma espécie de cometa na literatura brasileira. Negra, pobre, precariamente alfabetizada, viu seu nome brilhar intensamente em 1960, quando lançou Quarto de despejo: diário de uma favelada, contundente relato sobre o sofrido cotidiano na favela do Canindé, na cidade de São Paulo, para onde a mineira de Sacramento se mudou no final dos anos 40. Entretanto, também viu o sucesso como escritora, papel que ela tanto buscara desde cedo, apesar das dificuldades, durar pouco. Os livros lançados logo a seguir não tiveram na época a mesma recepção de público e crítica, e Carolina voltou ao ostracismo, morrendo igualmente pobre em 1977. Embora pequena e fora dos padrões do cânone literário, sua obra ganhou tamanha dimensão e importância, sendo traduzida para vários países, que ainda hoje suscita debates como Carolina de Jesus: uma voz soberana, que acontecerá nesta terça-feira, dia 14 de março, aniversário da autora, no auditório do Instituto Moreira Salles do Rio de Janeiro, com entrada gratuita.
O evento começa às 15h, com a exibição do filme Favela: a vida na pobreza, da alemã Christa Gottmann, realizado em 1971 a partir do livro Quarto de despejo, tendo Carolina como protagonista. A produção só foi exibida no Brasil em 2014, depois que o IMS – que detém em seu acervo dois cadernos manuscritos da escritora desde 2006 – localizou o curta-metragem (16 minutos) na Alemanha.
“Um dos orgulhos que temos é a descoberta desse filme do qual todos falavam e ninguém havia visto. Ele era sempre mencionado na cronologia de Carolina, divulgado como O despertar de um sonho”, lembra Elvia Bezerra, coordenadora de literatura do IMS e responsável pela busca do curta, que expunha sem filtros as mazelas de uma favela no momento em que o Brasil se orgulhava de cantar, em plena ditadura militar, “este é um país que vai pra frente”. “Comecei a escarafunchar e um amigo meu, diplomata alemão, ajudou a descobrir o filme na cinemateca de uma cidadezinha da Alemanha. Foi totalmente recuperado pelo IMS em 2013, na preparação para o centenário de nascimento dela no ano seguinte”.
Depois da exibição do curta, a pesquisadora e professora Elena Pajaro Peres falará sobre a atribulada vida e obra de Carolina sob diversos aspectos, como o período de formação no interior de Minas; a literatura testemunhal registrada em Quarto de despejo e Casa de alvenaria: diário de uma ex-favelada (publicado em 1961); os elos da escritora com a comunidade; a importância da herança africana; os textos que permanecem inéditos. Uma breve aula que ajudará a compor um retrato mais amplo da mulher que, com sua voz soberana, conseguiu jogar um pouco de luz sobre um segmento menosprezado da sociedade brasileira.
Elena, que baseou sua apresentação na própria pesquisa de pós-doutorado desenvolvida entre 2012 e 2016 no Instituto de Estudos Brasileiros da USP, com estágio de pesquisa de um ano na Boston University (ambos feitos com bolsa da Fapesp), intitulada Escrita proibida. Expressão romântica e diáspora africana nos manuscritos de Carolina Maria de Jesus, destaca os fatores que a levam a chamar a obra da autora de uma literatura em movimento.
“O primeiro deles é que ela é uma literatura de diáspora, uma escrita que se constrói em movimento, durante o deslocamento espacial e cultural experimentado pela escritora”, diz Elena, que tem um texto sobre a autora de Quarto de despejo no recém-lançado livro digital Memória feminina: mulheres na história, história de mulheres (Fundação Joaquim Nabuco), organizado por Maria Elisabete Arruda de Assis e Taís Valente dos Santos. “Dessa forma ela incorpora elementos de diferentes tradições que estão em circulação no mundo afro-euro-americano ou afro-euro-brasileiro e os recria de maneira esteticamente elaborada. Essa literatura também se movimenta entre os gêneros literários. Há contos que são memórias, memórias que são romances, romances autobiográficos, poemas que são provérbios etc. Os personagens também sofrem esse deslocamento constante e Carolina mescla muitas vezes sua biografia com a deles. Para se compreender essa literatura não canônica, é preciso ter um olhar que busca o percurso, os desvios e as retomadas de caminho”.
Os caminhos de Carolina foram árduos, mas sua história também teve um quê de conto de fadas. Descoberta na favela pelo repórter Audálio Dantas em 1958, quando o jornalista fazia uma reportagem no local, ela conquistou críticos, leitores e capas de revistas em 1960, no momento em que seus diários – escritos em cadernos achados no lixo que ela revirava todos os dias, incansavelmente, em busca de algo que pudesse virar dinheiro para alimentar os três filhos – foram reunidos no livro Quarto de despejo, que teria vendido 80 mil exemplares na ocasião, um número até hoje robusto para o mercado editorial. As histórias ali contadas, dela e de seus vizinhos (que a criticaram e repudiaram por expor vidas alheias), mostravam um universo de miséria e abandono social propositalmente ignorado. Não apenas na literatura. Numa demonstração da glória alcançada quase instantaneamente por Carolina, em 1961 a obra foi adaptada para o teatro por Edy Lima, com direção de Amir Haddad e Ruth de Souza no papel principal.
Se os livros seguintes, como Casa de alvenaria; diário de uma ex-favelada, Provérbios e Pedaços da fome (ambos de 1963), foram um fracasso, isso não impediu que o nome de Carolina extrapolasse as fronteiras: suas obras ganharam dezenas de edições pelo mundo, da Hungria ao Japão, da Dinamarca à Argentina. Quarto de despejo, por exemplo, foi traduzido para 15 idiomas. E Diário de Bitita foi lançado primeiro na França, em 1982, já postumamente, e no Brasil apenas em 1986. Dezessete exemplares de obras de Carolina em línguas diversas foram adquiridas pelo IMS para complementar a biblioteca de apoio ao acervo da escritora. “Existem várias teorias sobre a queda abrupta dela, mas o que me impressiona é a sua determinação. Ela se considerava uma escritora, sonhava alto, teve uma história incrível”, observa Elvia Bezerra.
Para Elena Pajaro Peres, o papel de Carolina na história da literatura brasileira foi mudando ao longo dos anos. “Se no início ela interessava mais como um relato social, passou lentamente a ser incorporada às categorias de literatura marginal, de periferia, negra e literatura feminina”, diz ela. “O problema é que muitos textos permanecem inéditos e, mesmo aqueles que foram publicados, além de Quarto de despejo, ainda são pouco lidos, isso limita sua análise e faz parecer que sua literatura é sempre testemunhal”, destaca Elena. A professora também lembra que alguns dos textos reunidos nos dois cadernos sob a guarda do IMS (um deles intitulado Um Brasil para os brasileiros: contos e poemas) continuam sem publicação, constituindo um material importante tanto para os estudos da obra da própria escritora, como para a história da literatura brasileira.
Sempre citada como uma precursora da chamada literatura de periferia, Carolina Maria de Jesus não pode ser lida apenas sob a luz dessa categoria, afirma Elena, justamente por ser uma obra que se movimenta por múltiplos cenários e significados. “Em primeiro lugar é preciso dizer que Carolina não produziu sua literatura na periferia, parte dela foi feita antes dela viver na favela e parte depois que saiu dela e foi morar em Osasco, Santana e finalmente no sítio em Parelheiros”.
No momento em que muitas minorias têm conseguido, ainda que mais lentamente do que o ideal e necessário, se fazer ouvir, um evento como Carolina de Jesus: uma voz soberana vai mais além do que contar somente uma história individual. “O preconceito e a segregação denunciados nos escritos de Carolina perduram em várias estruturas, mas também há uma reflexão intensa sobre isso e uma luta por direitos das mulheres e dos afrodescententes, e isso a nível mundial”, analisa Elena. “Carolina concretizou muitos de seus sonhos, com soberania, mas também teve que deixar, de forma igualmente digna, muitos deles para trás. Essa é a história de muitas Carolinas que nela se espelham”.
Mais Carolina de Jesus
Por Elvia Bezerra, Julia Menezes e Laura Klemz
A atriz Ruth de Souza se encontrou com Carolina de Jesus na Favela do Canindé para conversarem sobre a primeira montagem da adaptação teatral de Quarto de despejo. Dirigida por Amir Haddad e escrita por Edy Lima, a peça trouxe Ruth de Souza no papel de Carolina e não agradou muito ao crítico Decio de Almeida Prado.
Quarto de despejo: “flor incrível e pura”
Por Elvia Bezerra
“Semianalfabeta, queria ser escritora, e queria ser escritora publicada em inglês. Conseguiu”, escreve Elvia Bezerra sobre Carolina de Jesus. “Não só em inglês, mas em francês, alemão, holandês, italiano, tcheco, húngaro, polonês, russo e até japonês, entre outras línguas com as quais jamais deve ter sonhado.”
O IMS-RJ comemorou o centenário de nascimento da escritora Carolina de Jesus no dia 14 de março de 2014 com o evento Carolina é 100. Veja o debate que aconteceu durante o evento, entre Audálio Dantas, descobridor de Carolina de Jesus, e a professora e crítica literária Marisa Lajolo.
Carolina Maria de Jesus e a favela
Durante 43 anos ouviu-se falar em um documentário sobre Carolina Maria de Jesus, autora de Quarto de despejo, protagonizado por ela mesma. O título livre do filme, de acordo com as referências, era O despertar de um sonho, dirigido pela alemã Christa Gottmann-Elter, em 1971. Impedido de passar no Brasil por apresentar a miséria da favela paulista do Canindé, onde morava Carolina, o filme de 16 minutos seria localizado e restaurado pelo IMS na Alemanha. Sob o título Favela: a vida na pobreza, foi exibido pela primeira vez no Brasil, por ocasião do centenário de nascimento da escritora, em 14 de março de 2014. Veja flashes do documentário e os depoimentos do fotógrafo Ricardo Stein e do roteirista e produtor Otto Engel a respeito da elaboração desse filme.
O sucesso de Quarto de despejo, o livro, motivou Quarto de despejo, o disco. A mineira Carolina Maria de Jesus, catadora de papel que se tornou escritora, gravou em 1961, um ano depois de seu best-seller, músicas que ela mesmo compôs. O raro LP pertence ao Acervo José Ramos Tinhorão, sob a guarda do IMS. Em homenagem ao centenário de Carolina Maria de Jesus, a Batuta apresentou as 12 faixas.