A série Primeira Vista traz textos de ficção inéditos, elaborados a partir de fotografias selecionadas no acervo do Instituto Moreira Salles. O autor escreve sem ter informação alguma sobre a imagem, contando apenas com o estímulo visual. Nesta edição, o escritor Itamar Vieira Junior, autor do premiado romance Torto arado, inspirou-se em uma imagem de Thomaz Farkas (1924-2011), fotógrafo, cineasta e empresário, nascido em Budapeste e radicado em São Paulo. O IMS tem sob sua guarda 34 mil fotografias de Farkas, cuja obra faz uma síntese das vertentes formais e humanistas mediada por uma personalidade sensível, afetiva e sinceramente preocupada pela condição do outro e do país que adotou.
Era sobre a luz, a luz que adentrava as vidraças e sobre o seu corpo, sobre o jornal e os sapatos gastos que encontravam as ruas todos os dias, porque tudo falava de alguma maneira sobre um desajuste seu ao mundo quase intransponível. Seus olhos e sua cabeça deveriam estar repousados na página de ofertas de emprego, mas eram o café e a firmeza da cadeira, e o chão limpo e a elegância de sua posição que o deixavam confortável na fração que pode ser ao mesmo tempo instante e eternidade.
E naquelas páginas estava a vida além da casa, do bairro, além da cidade. Naquelas páginas se abriam inúmeras janelas para o mundo, eu bem sei, e sobre elas se lia com curiosidade sobre o que não podíamos viver por estarmos cercados, e muitas vezes os sapatos que calçamos são os códigos que nos marcam aos lugares onde podemos ou não estar. Nos confinaram em baias, como animais domésticos, mesmo que não falássemos sobre isso, e não falássemos também que não poderíamos estar onde exatamente desejávamos. Mas naquele instante era um homem e lia, e se sentia parte do entorno por compreender o que poderia ser uma guerra e suas conquistas, o que poderia ser a morte e a política. E é possível que na página seguinte ria, e na outra seja tomado pela aflição, porque é sobre economia e escreveram as palavras leite, trigo e pão e a carestia que criou uma legião de famintos. Talvez sinta a melancolia em certa passagem, a fotografia de uma artista de cinema que desponte bela e tenha os olhos marcados pelo desejo, e o desejo se liberta das páginas porque cresce livre em seu colo. E sua mulher, seus filhos, sua família estão ali e todos os acontecimentos podem chegar até eles e os machucam e os ferem, e os enchem de esperança e de coragem, e nem é preciso de uma artilharia voltada para si, basta a que está posicionada no horizonte e todos os dias se sente o trepidar de seus estouros imaginários.
Mas antes de fechar o jornal e se levantar sem chegar aonde deveria chegar, sua mente e coração se fixam no regresso à casa. E sua mulher estará exausta por passar o dia fazendo das tripas coração para pôr o almoço na mesa, por implorar ao cobrador da companhia de energia elétrica que é preciso luz para que os meninos possam estudar após as aulas. Todas as páginas despontam assim, entre a memória e a vergonha, entre o gozo e a tristeza, as tintas negras pintam suas mãos macias, nada de calos, não são as mãos repletas de nós do pai e do avô e do bisavô que não conheceu. E é um caminhar inevitável às páginas finais e se prepara com bravura para encontrar com uma ponta de revolta as ofertas de trabalho destinadas aos homens de sapatos gastos: estivador, bom porte e força física; ajudante de cozinha, trabalho de domingo a domingo; auxiliar de escritório com experiência e só, não deseja mais ler. Volta à primeira página e a luz é boa e o som do apito do bonde é irritante e a cadeira é simples, mas honesta, e o couro o suporta como numa boa sela de montaria.
E se volta de novo às palavras, mas há as imagens desbotadas e de contornos indefinidos. E uma tinta cada vez mais negra se une à mão e é assim que atravessa tudo aquilo que já viu mais de uma vez. Não, não é possível que não precisem de alguém para trabalhar assim: de terno limpo e passado, sapatos talvez mais bem engraxados, um chapéu garboso, sentado numa cadeira de assento de couro, se informando sobre o mundo, sobre a arte, sobre a política e a economia, enumerando palavras e descobrindo coisas novas e partindo para onde queira porque é assim que se gostaria de viver, eu bem sei, você bem sabe.
Itamar Vieira Junior é baiano de Salvador, nascido em 1979. É geógrafo e doutor em estudos étnicos e africanos pela UFBA. Escreveu a coletânea de contos A oração do carrasco (2017) e o romance Torto arado (2019). Livro de ficção mais vendido no Brasil em 2021, Torto arado venceu o Prêmio Leya, recebeu os prêmios Oceanos e Jabuti e está sendo traduzido para uma dezena de idiomas. Em 2020, Itamar Vieira Junior participou do programa Convida do IMS.