Jornalista, radialista e produtor musical, Walter Silva (São Paulo, 1933-2009) foi repórter de campo, narrador, locutor de rádio, disc jockey, produtor de discos e de espetáculos musicais. Tornou-se um dos maiores difusores da bossa nova, tendo promovido – e gravado – shows históricos com os artistas mais representativos do movimento.
Em artigo publicado na “Folha de S. Paulo” em 17/7/1978 (“Há vinte anos começava a desafinação”), ele registra sua versão do que teria sido o marco inicial:
Não se pode precisar exatamente quando tudo começou. Mas, mais ou menos, quando um moço chamado Antonio Carlos Jobim, talvez na mesa do Vilarino (um escondido bar que fica atrás de uma mercearia na Avenida Graça Aranha, no Rio de Janeiro), viesse a ser apresentado ao diplomata e poeta Vinicius de Moraes para musicar seu texto Orfeu do Carnaval, que virou Orfeu Negro, depois de ser em teatro Orfeu da Conceição.
Naquela mesa de bar reuniam-se todas as tardes Irineu Garcia, dono da etiqueta Festa, o primeiro a gravar poemas de Neruda, peças de teatro como Do tamanho de um defunto, de Millôr Fernandes, e que começava a discutir um disco que estava em sua cabeça com Elizeth Cardoso cantando poemas de Vinicius musicados por Tom; Paulo Mendes Campos, Luís Jatobá, Fernando Sabino, Rubem Braga e mais alguns outros, até mesmo o intruso bissexto que está escrevendo tudo isto.
O Orfeu é de 1956, sendo possível, portanto, que o “intruso bissexto” tenha mesmo presenciado alguma coisa ali, já que desde o ano anterior ele tinha se transferido para o Rio de Janeiro, trabalhando nas rádios Mayrink Veiga, Mundial e logo depois na Nacional.
Seis anos mais tarde, com a perda do status de capital federal, a classe média carioca parecia voltar-se para aquilo que ninguém lhe pode tirar: “este céu, este mar, esta gente feliz”, cantados em valsa de Ismael Netto e Antonio Maria oito anos antes, soavam então como autênticas palavras de ordem. Estava declarada a bossa nova.
Walter Silva estava no Au Bon Gourmet no dia 2/8/1962, gravador em punho, para registrar o histórico show que reuniu Tom Jobim (voz e piano), Vinicius de Moraes (voz), João Gilberto (voz e violão) e Os Cariocas (vocais), mais Otávio Bailey Jr. no contrabaixo e Milton Banana na bateria, produção de Aloysio de Oliveira, e no qual foram apresentadas pela primeira vez músicas como Só danço samba, Samba do avião e Garota de Ipanema.
Lembro-me que fomos até o Rio de Janeiro para gravar esse show para os ouvintes do nosso programa e da primeira vez não deu, pois o mesmo fora adiado para a semana seguinte, por não estar ainda devidamente ensaiado. Voltamos, e só aí conseguimos gravá-lo. Mas valeu a pena. Hoje estamos de posse desse tesouro que em breve poderemos repartir com todos. (O show da boate Au Bon Gourmet, “Diário do Grande ABC”, 6/11/2000)
Hoje este registro pode ser encontrado em diversos canais da internet sob o título “Um encontro no Au Bon Gourmet”, com direito a capa da Elenco e tudo. Vale ouvir a exclusiva introdução de Garota de Ipanema nas vozes dos três protagonistas daquela noite.
Garota de Ipanema (Tom Jobim e Vinicius de Moraes)
João Gilberto, Tom Jobim e Vinicius de Moraes
No final deste mesmo ano, mais precisamente no dia 21 de novembro, “a bossa nova seria definitivamente apresentada ao mundo, naquele espetáculo que reuniu uma multidão dentro e outra do lado de fora daquele templo da música mundial”. (A bossa nova no Carnegie Hall [1], “Diário do Grande ABC”, 14/11/2000)
Walter Silva cobriu a viagem, os ensaios e, claro, o espetáculo propriamente dito, para a Rádio Bandeirantes. Estava no voo que saiu de São Paulo com três dos participantes – Agostinho dos Santos, Ana Lúcia e Caetano Zamma – e fez escala no Rio, onde embarcaram os demais. Chegando a Nova York, hospedou-se com a trupe (“umas 30 ou 40 pessoas”) no hotel Diplomat.
O show foi ideia do dono da gravadora Audio Fidelity, Mr. Sidney Frey, que procurou o Ministério das Relações Exteriores do Brasil (Itamaraty). Por intermédio do conselheiro Mário Dias Costa ele acionou o Consulado do Brasil em Nova York e, através de nossa consulesa Dora Vasconcellos, agitou o evento e cuidou de todas as providências, antes, durante e depois do show. (ibid.)
Quem abriu a apresentação foi o conjunto de Sergio Mendes, formado por ele (piano), Paulo Moura (sax alto), Pedro Paulo (trompete), Durval Ferreira (guitarra), Tião Neto (contrabaixo) e Dom Um Romão (bateria).
Samba de uma nota só (Tom Jobim e Newton Mendonça)
Sérgio Mendes e seu conjunto
São muitas as histórias que Walter Silva colecionou sobre a viagem e narrou depois em seus artigos e programas de rádio. E, como testemunha ocular, saiu em defesa do movimento quando seus opositores começaram a divulgar notícias do fracasso da bossa nova em Nova York.
Sucesso incontestável. Três mil pessoas dentro e outro tanto lá fora, se engalfinhando por causa de um ingresso. Se isso não é sucesso, o que será, então? (A bossa nova no Carnegie Hall [3], “Diário do Grande ABC”, 2/12/2000)
Mas o maior fruto de toda essa experiência parece ter sido a conquista da confiança e da simpatia de um respeitável time de músicos. Em pouco tempo isso se converteria em importante trunfo para reunir elencos, lotar plateias e tornar São Paulo a capital da bossa nova.
O fino da bossa
Uma iniciativa do Centro Acadêmico XI de Agosto, tradicional entidade estudantil da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco (USP), levou ao palco do Teatro Paramount, no dia 25/5/1964, o show O fino da bossa, com o objetivo de angariar fundos para as obras assistenciais do CA. Com estrutura de entradas sucessivas, semelhante àquela do evento no Carnegie Hall, apresentaram-se ali Rosinha de Valença, Wanda Sá, Alaíde Costa, Zimbo Trio, Paulinho Nogueira, Ana Lúcia, Jorge Ben, Nara Leão, Oscar Castro Neves e orquestra de cordas.
Alaíde Costa, o maior sucesso da noite, cantou a linda composição de Oscar Castro Neves e Luvercy Fiorini, Onde está você? (O fino da bossa, “Diário do Grande ABC”, 5/6/2000)
Onde está você? (Oscar Castro Neves e Luvercy Fiorini)
Alaíde Costa com Oscar Castro Neves e seu noneto
Ao contrário do que se imagina, Walter Silva não esteve envolvido na concepção desse espetáculo. Ele apenas colaborou em sua divulgação, através do programa de rádio O Pick-Up do Pica-Pau, e depois na produção do disco que veio a ser lançado pela RGE. Mas O fino da bossa representou a descoberta de um caminho a que ele iria se entregar, com afinco, a partir de então, decidido a repetir aquele sucesso, fazendo no Teatro Paramount seus próprios shows.
Boa bossa
Cartaz Boa bossa
Em 31 de agosto do mesmo ano ele ajudaria a produzir, para a Associação Beneficente de Moças da colônia sírio-libanesa de São Paulo, o espetáculo Boa bossa.
As atrações maiores desse show foram Elis Regina (que pela primeira vez se apresentava em São Paulo) e Sílvio César, que cumpria temporada com o Sambossa 5 na boate Djalma’s, na praça Roosevelt. (…)
Anotei o telefone de Elis, no Rio, e já em 26 de outubro ela fazia seu primeiro show no Paramount, chamado O remédio é bossa. (O fino da bossa, “Diário do Grande ABC”, 5/6/2000)
O remédio é bossa
Cartaz O remédio é bossa
Visando arrecadar fundos para a formatura da turma de 1964 da Escola Paulista de Medicina, o Centro Acadêmico Pereira Barreto convidou Walter Silva para produzir um show com o que de melhor houvesse na música popular.
E lá fomos nós atrás de todos eles: Antonio Carlos Jobim, Vinicius de Moraes, Elis Regina, Os Cariocas, Silvia Telles, Carlos Lyra, Marcos Valle, Oscar Castro Neves, Quarteto em Cy, Alaíde Costa, Walter Santos, Roberto Menescal e seu conjunto, Zimbo Trio, Jair Rodrigues, Paulinho Nogueira, Vera Brasil, Copa Trio e só. Em nomes famosos, foi o maior show que o Teatro Paramount já viu. Cada artista que se apresentava mereceu uma produção especial para o seu número. Os Cariocas fizeram a apresentação de cada um deles de um lugar do teatro: do balcão, da plateia, dos camarotes, das frisas, dos corredores etc. Para cada artista o maestro Severino Filho fez uma vinheta especial, anunciando seu número. (O remédio é bossa, “Diário do Grande ABC”, 16/5/2000)
Vinicius cantou Mulher, sempre mulher, da trilha do Orfeu. O disco, infelizmente, não traz o nome do violonista que fez o acompanhamento.
Mulher, sempre mulher (Tom Jobim e Vinicius de Moraes)
Vinicius de Moraes
Mens sana in corpore samba
Cartaz Mens sana in corpore samba
Produzido para os alunos da Escola de Educação Física da USP, este show subiu ao palco do Paramount no dia 16/11/1964, inaugurando o novo formato que seria adotado por Walter Silva daí para a frente.
A rigor esse foi verdadeiramente o primeiro show com minha marca de produção. Se O remédio é bossa primou por ter apenas artistas consagrados, o Mens sana in corpore samba, pela primeira vez, dividiu-se em duas partes para, na primeira, priorizar os novos talentos da música brasileira. (…) Ficando para a segunda parte, o show da boate Zum-Zum, do Rio de Janeiro, com Silvia Telles, o conjunto de Roberto Menescal, com Oscar Castro Neves. Êxito total. Nessa noite, Chico Buarque foi o mais aplaudido, cantando, entre outras coisas, Pedro Pedreiro. Estava lançado o grande ídolo da música brasileira. (www.waltersilvapicapau.com.br)
Primeira Denti-samba
Cartaz Primeira Denti-samba
Apenas uma semana depois – e fechando a “temporada 1964” no Teatro Paramount – mais um espetáculo, agora para os alunos da Faculdade de Odontologia.
Este show marca o primeiro show solo de Elis Regina. Acompanhada pelo Copa Trio (Salvador, Dom Um e Gusmão), a baixinha só não fez chover. Para comprovar o que estamos dizendo, enquanto ela se apresentava, a coxia era invadida por Walter Santos, Pery Ribeiro, Geraldo Vandré, Oscar Castro Neves, Paulinho Nogueira, Alaíde Costa, Zimbo Trio, que haviam se apresentado na primeira parte, se acotovelavam para ver Elis e urravam de entusiasmo. (ibid.)
Mas Walter Silva não parou por aí. Em março de 1965, levou ao palco do Paramount o BO-65, com Wilson Simonal, Alaíde Costa e Zimbo Trio. Um mês depois, produziu um show que juntava Elis Regina, Jair Rodrigues e o Jongo Trio, com lotação esgotada nas três noites. Lançado em LP com o título Dois na bossa, foi um grande sucesso: é considerado o primeiro disco brasileiro a alcançar a marca de um milhão de cópias vendidas.
Seguiram-se, ainda em 1965, os shows Nara Leão, Edu Lobo e Tamba Trio, também registrado em disco, e Samba novo, promovido pelos estudantes de Filosofia da USP, que “trazia pela primeira vez a ideia de Nara Leão de juntar a bossa nova com samba de morro, e vieram Nelson Cavaquinho, Zé Keti, Cartola, Sérgio Mendes, Geraldo Vandré, Alaíde Costa, Johnny Alf, Roberto Menescal, Os Cariocas, Zimbo Trio, Leny Andrade, entre outros”. (ibid.)
A partir de 1966 o filão começa a se esgotar. A última tentativa é feita em 1967, no show A volta.
Como se percebe, já começava a esvaziar-se o movimento de shows de bossa nova depois de quatro anos de sucesso ininterrupto. Depois de longa ausência voltamos ao Paramount, aliás, o título do show já dizia isso, A volta. Usando como leitmotiv uma linda canção de Menescal e Boscoli, com o mesmo título, cantada por Ivete, retornamos retumbantemente à nossa casa de espetáculos – ao nosso templo. E não poderia ser melhor. Nessa noite, cuja atração maior seria Edu Lobo, outros brilharam muito e tivemos a felicidade de lançar para o mundo uma canção interpretada ali pela primeira vez pelo seu autor, Milton Nascimento: Travessia. (ibid.)
Com seu Pick-Up mantendo-se firmemente nos primeiros lugares em audiência no rádio, Walter Silva buscou outras atividades, como a produção de discos, os artigos em jornais sobre música popular brasileira e, finalmente, a televisão, onde pôde aplicar toda a experiência adquirida nesses quatro intensos anos.
Bia Paes Leme é coordenadora de música do IMS.