Este é o segundo relato de uma série baseada nos documentos do Acervo Walther Moreira Salles a respeito de suas atividades como patrono das artes. O primeiro tratou de sua experiência no Museum of Modern Art (MoMA-Nova York) e o próximo abordará sua gestão do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM-Rio).
Walther Moreira Salles e o Museu de Arte de São Paulo
O primeiro registro sobre o MASP no Acervo Walther Moreira Salles é de 1947. Informa que ele doou sozinho Retrato de Suzanne Bloch, um óleo sobre tela da fase azul de Picasso. Naquele mesmo ano o museu seria inaugurado de maneira provisória (mas que durou 21 anos) na sede dos Diários Associados, na rua 7 de Abril, centro de São Paulo.
A documentação mostra que até 1958 ele repetiria o gesto mais oito vezes. Em 1957 pagaria sozinho A Virgem com o menino de pé, abraçando a mãe, de Giovanni Bellini, além de ter participado de sete outras doações. A qualidade chama a atenção: van Gogh, Renoir, Rembrandt, Velázquez, Degas, Modigliani. A riqueza das histórias também, em especial a da aquisição de um Rafael, de que participou diretamente e que viria a se constituir numa das obras mais valiosas do MASP.
O promotor destas e de muitas outras compras foi Assis Chateaubriand, dono dos Diários Associados e idealizador e criador do museu. Ele se convenceu de que o Brasil necessitava de um grande museu de arte, e após a Segunda Guerra Mundial, dando-se conta de que o mercado de arte na Europa estava em baixa, percebeu que a hora seria aquela. O jornalista tinha 54 anos em 1946, quando, em seu primeiro encontro com Pietro Maria Bardi, crítico de arte italiano que trouxera uma exposição ao Rio de Janeiro, firmou imediatamente um contrato de importantes consequências e Bardi passou a assessorá-lo nas aquisições das obras.
A estratégia era sempre a mesma: Chateaubriand fechava o negócio e depois empregava sua influência para levantar recursos junto a indivíduos, empresas e instituições para financiar a compra – foram exatos 348 no total. Assim foi composto o acervo inicial do que viria a ser o melhor museu de arte do Hemisfério Sul. Merecidamente, ele veio a se chamar Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand.
É de se perguntar o por quê de Walther Moreira Salles se envolver por tanto tempo na constituição do acervo do MASP. Era 20 anos mais jovem que o jornalista, e se poderia imaginar que Chateaubriand tenha tido influência sobre ele – mas não é o que se vê em seu trajeto comedido, tão distante da extroversão do outro. Se fôssemos buscar influências pessoais sobre o jovem banqueiro, seria mais fácil encontrá-las em Nelson Rockefeller, com quem convivera em Nova York e no Rio de Janeiro desde fins da década de 1930 e com quem, guardadas as proporções, se assemelhava como patrono das artes, generoso e discreto.
A documentação do acervo permite indicar três bons motivos para ele ter se empenhado tanto na formação do MASP.
Um deles era seu grande interesse pelas artes plásticas. Até o final desse período se tornaria um colecionador importante, reconhecido no mundo especializado de Paris, Londres e Nova York por seus bons impressionistas (Manet, Matisse, Renoir, Cézanne, van Gogh) e pela qualidade de sua galeria como um todo. A residência que fez construir na Gávea no fim da década de 1940 foi concebida também como espaço de exposição que já nasceu incorporando duas obras relevantes – um painel de Burle Marx no jardim e um mural de Portinari numa de suas salas principais.
Mas, além do gosto pessoal, havia uma convicção. No discurso “A responsabilidade social do empresário”, pronunciado em junho de 1974, fica clara sua concepção do papel do empresário no mundo moderno:
[...] O capitalismo tradicional, confiante na ‘mão oculta da Providência’ para resolver todos os problemas sociais – certo de que, maximizando seus lucros, também maximizaria o bem estar social – está com os dias contados.
[...] Como já tenho dito, a mentalidade empresarial, à medida que se atualiza e moderniza, tem de superar a antiga dicotomia entre responsabilidade pública e interesse privado. O administrador moderno carrega uma responsabilidade de ordem pública, anteriormente identificada apenas com a atividade política ou burocrática estatal.
[...] A responsabilidade social, tal como exigida do empresário de hoje, vai muito além das atitudes tímidas e simbólicas até agora tomadas, representadas quase sempre por medidas ad hoc e impostas de fora para dentro. Exige definição clara, verbas precisas, inclusão regular em planos multianuais e, por que não?, publicidade destinada a um impacto psicológico benéfico sobre a comunidade.
Se a arte era um prazer, participar de instituições da sociedade civil era uma obrigação.
A terceira razão era a longa e forte amizade que o unia a Assis Chateaubriand. O mais antigo documento no Acervo Walther Moreira Salles referente às relações entre ambos é um artigo no Diário da Noite de 7 de março de 1936 em que Chateaubriand conta uma viagem ao sul de Minas. Naquela altura Walther Moreira Salles tinha apenas 24 anos. Havia três que era sócio do pai na gestão dos negócios, no centro dos quais estava uma casa bancária e uma empresa de comercialização de café. Essas duas condições foram apresentadas da seguinte forma pelo jornalista:
[...] A fonte principal, que me permitiu o conhecimento dessa verdade [a alta qualidade dos cafés cultivados no sul de Minas], não foi outra senão o meu amigo Walther Moreira Salles, diretor gerente da Casa Moreira Salles & Cia., grande produtor e exportador de cafés finos, cuja gentileza e cavalheirismo para comigo se exprimiram na excelente viagem que fizemos juntos de Campinas a Poços de Caldas.
Essa firma possui a bagatela de nada menos de um milhão de pés de café de produção fina. Compra e vende 300 mil sacas do produto de ótima bebida a essa potência e a essa notável força de estímulo à melhoria da produção cafeeira do Brasil que é a American Coffee Corporation.
Esses dois parágrafos nos dizem muito sobre coisas pouco conhecidas. Mostra que a força econômica do grupo Moreira Salles se origina no café, base de seus negócios financeiros – o Banco Moreira Salles seria inaugurado em 1940. E aponta para relações internacionais relevantes. A American Coffee Corporation, ACC, controlada pela família Rockefeller, começara a operar no Brasil em 1929. Pouco tempo depois encontrou parceiros importantes: os Moreira Salles. João Moreira Salles e o filho Walther eram comissários de café em Poços de Caldas e donos de armazéns gerais em Santos. Com o conhecimento do mercado obtiveram um contrato de exclusividade com a ACC, que viria a ser a maior importadora de café dos Estados Unidos.
A amizade entre o jovem anfitrião da viagem e aquele que já era o mais bem sucedido empresário de comunicações no país se estende até o fim dos dias de Chateaubriand, em 1968. Bem ao estilo desse primeiro artigo, muitos dos momentos de convivência dos dois foram escancaradamente proclamados por ele em cartas, telegramas e matérias de jornal (no Acervo WMS há 23 artigos assinados) elogiando Walther Moreira Salles como filantropo, empresário, embaixador e ministro. É muito curioso o contraponto entre essas personalidades tão díspares, uma dionisíaca e expansiva, outra, apolínea e rigorosa. Compare-se:
A distância entre a expressão contida de Walther Moreira Salles e a forma expansiva de Assis Chateaubriand – a que se deve acrescentar os 25 anos que separam as duas manifestações – não obscurece a concordância em torno de princípios caros a ambos.
Francisco de Assis Chateaubriand Bandeira de Mello foi uma figura a respeito da qual, segundo o próprio Walther Moreira Salles, “serão escassos os adjetivos para qualificá-lo”. Construiu entre as décadas de 1920 e a de 1950 as Emissoras e Diários Associados, a maior rede de comunicação que já houve no Brasil, com cerca de 100 veículos. Por três décadas não houve na sociedade civil brasileira ninguém mais poderoso – o próprio Getúlio Vargas várias vezes foi obrigado a se curvar às suas vontades.
Não foi apenas empresário, jornalista e formador de opinião, mas também senador por dois mandatos e embaixador do Brasil em Londres. Foi, intrinsecamente, um brasileiro que se orgulhava de seu país e se empenhava em construir sua grandeza – ao mesmo tempo em que defendia, tal como Walther Moreira Salles, o “capital estrangeiro”. Outro pontos de vista que também os unia era sua visão do papel das elites, suas obrigações perante a sociedade.
Dedicava-se a tais práticas com a mesma intensidade que se dedicava à construção de seu império jornalístico. Sua filantropia em geral se fazia através da promoção de campanhas públicas, onde arrecadava dinheiro para os propósitos eleitos por ele, como foi a constituição do MASP.
Em geral suas campanhas tinham muito sucesso, até porque a força dos Diários Associados lhe dava uma moeda de troca sob forma de divulgação – a chegada das obras de arte ao Brasil, por exemplo, era sempre seguida de festas e cerimônias que recebiam ampla publicidade. E havia também um outro lado: o medo de que a recusa de doar tivesse como consequência a publicação de matérias desairosas ou difamatórias – sua ética era bastante flexível, diga-se de passagem.
O método tinha as grandes vantagens de potencializar os recursos financeiros e de coletivizar as ações filantrópicas. Além de servir para “reeducar a burguesia”, como disse em 1949, por ocasião da festa pela chegada do Retrato de jovem com corrente de ouro, de Rembrandt.
Os dois mecenas
O MASP foi a mais importante parceria nas artes, mas não seria a única.
Uma delas foi o primeiro dos muitos livros de arte que Walther Moreira Salles iria patrocinar, O Aleijadinho e a escultura barroca no Brasil, de Germain Bazin. Historiador de arte e conservador chefe do Louvre, Bazin viajara pelo Brasil numa pesquisa sobre a arquitetura e a estatuária barrocas. Encantado com Aleijadinho, reuniu material pensando em publicar um livro que divulgasse aquele gênio desconhecido na Europa e mesmo no Brasil. Chateaubriand veio a conhecê-lo em Paris e decidiu viabilizar a finalização do trabalho e a publicação do livro, que considerava um inestimável serviço às artes brasileiras. E é aí que entra Walther Moreira Salles.
Em 1958 Walther Moreira Salles enviou a Bazin um cheque de dois milhões de francos, mas só cinco anos depois o livro seria concluído e publicado em francês; a crer nas reportagens da época, teve o resultado esperado, a revelação do Aleijadinho para o público europeu. Muito satisfeito com o resultado, Chateaubriand escreveu o seguinte telegrama a Walther Moreira Salles, comunicando a remessa do livro:
Esse foi apenas seu primeiro livro; mais tarde Walther Moreira Salles se empenharia na publicação de outros livros de arte, tais como O Brasil de Thomas Enders, de Gilberto Ferrez, em 1976, A história geral das artes no Brasil, de Walter Zanini, em 1983, e a edição fac-similar do Manual do perfeito cozinheiro das almas deste mundo, de Oswald de Andrade, em 1987. São estes livros que inauguraram a grande série que depois viria a ser continuada pelo Instituto Moreira Salles.
Os dois também estiveram juntos no que seria a última empreitada de Chateaubriand na área da cultura, a Galeria Brasiliana. Destinada a reunir documentos históricos do Brasil desde o ano de 1500, tinha como objetivo localizar, reunir, expor e conservar documentos textuais, iconográficos e tridimensionais que constituíssem expressão ou exemplo das artes e do folclore do Brasil. E não era apenas instituição arquivística, também pretendia promover e divulgar conhecimentos sobre a história das artes do Brasil.
A Galeria Brasiliana já começaria com alguns documentos importantes, como o testamento de Martim Afonso de Souza, originais da obra poética de Cláudio Manuel da Costa e um conjunto de livros documentais sobre o Brasil Colônia. Embora os registros no arquivo não sejam categóricos, se pode supor que tenham sido doados por Walther Moreira Salles. E não se pode deixar de perceber a proximidade de propósitos com a instituição que ele criaria depois, o IMS.
A galeria tinha um viés mineiro: a sede seria em Belo Horizonte e sua diretoria era quase toda formada por gente de Minas Gerais, com Walther Moreira Salles na presidência. Buscava o apoio do governo estadual e municipal, mas dependia, basicamente, como todos os projetos de Assis Chateaubriand, da iniciativa privada. Para mobilizar os empresários, eram promovidos banquetes e cerimônias com ampla divulgação congregando a fina flor da elite econômica de Minas Gerais. Mas o projeto não vingou. Pouco depois da formalização institucional, em 1965, Chateaubriand foi acometido por uma doença que iria deixá-lo imobilizado até a morte, três anos depois, afastando-o de qualquer atividade. Sem seu entusiasmo, a ideia não foi adiante.
Um mineiro sísmico
Walther Moreira Salles teve uma atuação importante na formação do acervo do MASP. E não foram apenas as nove doações de obras, mas também seus serviços como “banqueiro do MASP”, como dizia Chateaubriand. Muitas vezes o Banco Moreira Salles abriu vultosas linhas de crédito em moeda estrangeira ao jornalista visionário, com poucas perguntas e muita confiança, dando-lhe grande amplitude de ação. É o que se vê em “O mineiro sísmico”, publicado no Diário de São Paulo de 23 de dezembro de 1963, apenas um entre muitos artigos de Assis Chateaubriand que tem Walther Moreira Salles como protagonista e a formação do acervo do MASP como enredo:
No mundo da arte, em Nova York, Paris e Londres ninguém ignorava as doações de Walther Moreira Salles ao Museu de São Paulo e, menos, os créditos maciços que lhe abria no exterior.
Por isto, convidei-o para irmos, com o professor Bardi, tomar parte no nosso último endividamento com a casa Wildenstein.
3 milhões e 800 mil dólares, incluindo José e a mulher de Putifar, de Gauguin, que ainda se achava na Suíça.
O banqueiro viu passar toda a coleção, durante duas e meia horas.
O tycoon da firma Georges Wildenstein dirigiu a operação.
Dedicava profundo respeito a Walther Moreira Saltes por ter este, em sua coleção, duas obras-primas de Cézanne e van Gogh.
Um dia depois, convidei Moreira Salles para irmos ver um Rafael, em outra galeria.
Nunca me passara a ideia de fazer mais esta tremenda aquisição que, com o imposto sobre a moeda estrangeira, aqui chegaria a 450 mil dólares.
O mineiro tinha o demônio na cabeça.
Fez tantas, que acabamos os dois comprando, ali mesmo, o Rafael.
Prontificou-se a dar, naquele instante, um terço do valor da obra, como sinal. Rousseau, chefe do departamento de pinturas do Metropolitan de Nova York, falou-me, ao telefone, das duas compras que abalaram a 57th Street:
– Soube-se aqui de um terremoto com o qual o banqueiro Moreira Salles sacudiu Manhattan.
Isto acontecia no tempo de André Mellon.
Levantemos os copos em honra deste mineiro sísmico.
O que, aliás, é normal entre aquelas montanhas convulsas.
Mas isso tudo são relatos passados que contam as primeiras experiências de Walther Moreira Salles com museus. Pode-se pensar que o IMS é, em parte, uma herança palpável desse convívio. Mas concretas mesmo são as obras que ele doou e que hoje admiramos, abaixo relacionadas.
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* Sergio Goes de Paula é coordenador do Acervo Walther Moreira Salles no IMS.
(Com a colaboração de Maria Silvia Gomes e Vinicius Rodrigues de Oliveira).