Jorge Bodanzky
Apresentação
por Thyago Nogueira
Filho de uma família de judeus austríacos que emigrou para o Brasil em 1937, às vésperas da anexação da Áustria pela Alemanha, Jorge Bodanzky herdou da mãe (uma livreira que tomava chá com Sigmund Freud) o encanto pelo conhecimento e do pai (um engenheiro que trabalhou com Gregori Warchavchik no Brasil) o sentido prático da vida. Uma das lembranças mais marcantes de Bodanzky, nascido em dezembro de 1942, foi a breve passagem por um internato austríaco de inspiração anarquista, nos anos 1950, durante o período em que a família visitou o país. Era o estímulo libertário de que precisava.
Bodanzky cresceu em São Paulo, embalado pelos passeios de jipe com o pai nos fins de semana, pelas longas tardes velejando na represa de Guarapiranga e por emocionantes voos de monomotor, que lhe renderam um brevê de piloto. O espírito aventureiro também era alimentado na poltrona das inúmeras sessões da Cinemateca Brasileira, amparadas por palestras de nomes ilustres, como Jean-Claude Bernardet e Paulo Emílio Salles Gomes.
Em 1964, o inquieto Bodanzky se mudou para Brasília, disposto a integrar a segunda turma do curso de arquitetura da recém-criada UnB, que acenava com uma grade curricular flexível e um time de professores notável. Foi sob a orientação de Amelia Toledo, titular de artes plásticas, que Bodanzky deu os primeiros passos na fotografia. A atividade seguiu com Athos Bulcão, numa série de imagens de uma prostituta da região do Gama, e aprofundou-se com Luis Humberto, fotógrafo com quem Bodanzky formaria uma parceria. Nota curiosa: o domínio do idioma inglês levou Bodanzky a ser escalado motorista do fotógrafo americano David Drew Zingg, em passagem relâmpago por Brasília, a serviço da revista National Geographic.
O sonho de Brasília virou fumaça em 1965, quando alunos e professores foram obrigados a bater em retirada. Depois de uma breve temporada em São Paulo, onde trabalharia como fotógrafo da revista Manchete e do estreante Jornal da Tarde, Bodanzky escaparia dos tempos sombrios com uma bolsa para estudar na Alemanha. Lá, seria apresentado ao genial Alexander Kluge, que o admitiria no recém-fundado curso de cinema da Hochschule für Gestaltung [Escola Superior da Forma]. Mas a atividade política dos alunos e as inclinações libertárias da escola de cinema também estavam com os dias contados. Eram tempos de debates acalorados. Em outubro de 1967, formado e já na antessala dos movimentos estudantis explosivos, Bodanzky voltava ao Brasil.
A partir de 1966, Bodanzky empunharia alternadamente a câmera de cinema e a máquina fotográfica, trabalhando com cineastas diversos, como Carlos Reichenbach, José Agrippino de Paula e Maurice Capovilla, e fotografando para publicações importantes, como as revistas Iris e Realidade.
Nos anos 1970, Bodanzky trabalhou no estúdio de publicidade Maitiry, que tinha como sócios o fotógrafo Fernando Lemos e o jornalista Audálio Dantas. Foi com a Maitiry que sobrevoou São Paulo, e, com Lemos, que criou a elegante fotografia em preto e branco de Compasso de espera (1969-73), filme de Antunes Filho. “Os mestres que eu admirava tinham todos uma coisa em comum: a escola da Bauhaus. Não é à toa que fui estudar em Ulm, herdeira da Bauhaus. Misturei tudo isso com uma visão social, tirada seja da nouvelle vague de Hiroshima, mon amour, de Alain Resnais, seja do neorrealismo italiano de O bandido Giuliano, de Francesco Rosi. Ambos em branco e preto, com imagens bem contrastadas.”
Foi trabalhando para uma reportagem da revista Realidade, em 1968, observando o movimento de prostitutas e caminhoneiros num posto de gasolina da rodovia Belém-Brasília, que Bodanzky teve a ideia de filmar Iracema, uma transa amazônica (1974), um de seus filmes mais conhecidos. A repercussão internacional do filme, proibido no Brasil até 1980, inclinaria a balança em direção à carreira de cineasta, num movimento pendular que só retornaria para a fotografia depois dos anos 2000.
Neste pequeno livro*, estão reunidas algumas das imagens que Bodanzky produziu nas inúmeras viagens pelo Brasil, feitas entre 1964 e 1974. “Essas fotos foram feitas durante deslocamentos para trabalhos de reportagem, como um registro pessoal, sem preocupação formal e sem esconder o veículo que me transportava”, relembra Bodanzky. Tiradas com a câmera na mão e a luz disponível, as imagens descortinam um país variado, usando intuição e acaso, no melhor estilo de fotógrafos viajantes, como Raymond Depardon, Robert Frank e Bernard Plossu. O que as une é a sensação de movimento e o clima de pé na estrada, sugeridos pelos recortes de para-brisas, pela presença de pilotos e motoristas e pelos horizontes e pontos de fuga sem fim. Janelas de carros e aviões constroem o enquadramento fotográfico, reforçando o espírito aventureiro e criando a sensação de que estamos sentados na poltrona de uma sala escura vendo o mundo de Bodanzky passar na nossa frente. Como um curta-metragem de imagens paradas, este livro homenageia o fotógrafo que esteve na origem do cineasta.
* Texto publicado originalmente em "Jorge Bodanzky: Brasil, 1964-1974", livreto da caixa A hora e o lugar, lançada pelo IMS em 2015.