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Contraste

Leituras do acervo

Atores convidados leem obras do acervo do IMS.

Elenco
André Lu
Euler SantiGama GamaGlaucia LombardiJoice MarinoMarcia do ValleMariah Da Penha


Marcia do Valle

Rio de Janeiro

Atriz, produtora e diretora de teatro no Rio de Janeiro. Estudou na CAL – Casa das Artes de Laranjeiras. Foi professora da CAL e da Escola de Teatro Martins Pena e coordenadora do ciclo de leituras dramatizadas da Casa da Gávea. Atuou também no cinema e na televisão, em novelas e minisséries.

Verão, lembra?
Ivan Lessa

Lembro.

Lembro do verão de 1966 como se fosse hoje: começou em dezembro de 1965. Havia o Centro e havia o Bairro; eu ia para o Centro, você ficava no Bairro. Você tinha um carro cor de creme que ficava o dia inteiro ao Sol sem se derreter. Eu andava com pressa entre as pessoas da cidade. Você mexia nos objetos com medo de quebrá-los e arregalava os olhos atrás dos óculos escuros. Eu abria gavetas, eu fechava gavetas, eu olhava o chão e as paredes. Suas mãos tocavam em tecidos novos davam um nó aqui, acertavam um compasso ali. Eu trocava de camisas e ligava para o tintureiro. Você reparava que brigavam na rua e falava em Araruama. Eu queria cedo me deitar.

Lembro.

À noite nos encontrávamos sem nos tocar, como se as mãos estivessem ocupadas trazendo um cesto de frutas para ao outro refrescar. E ligávamos e ligávamos o ar ― aquele ar a condicionar.

Lembra?

Nossos corpos feitos para sete dias de sol contentavam-se serenos com a praia aos sábados e domingos: éramos morenos até terça-feira, na quarta começávamos a branquear. No apartamento havia areia nos lugares mais inesperados, um tubo espremido de óleo de bronzear na sombra da pia se esquecia, a alpargata secava na janela, e os copos de refresco sempre a se esvaziar.

(Lembro-me que você conhecia tão bem minha casa ao ponto de nela, com um simples olhar, dependurava quadros e dispunha livros. Eu nada sabia de sua casa, de seus chaveiros, de sua última lâmpada à noite se apagar. Mas você desconhecia que cada vez que não me via eu estava no seu rosto, com os olhos, a buscar.)

Naquele verão havia um rumor de cascata em torno de mim: como se torneiras de água cristalina estivessem sempre a jorrar. Era eu por dentro fugindo de minha ambição de dar e dar e, cada vez mais, dar.

Lembro, lembro.

Você enrouquecia e sua bolsa estava sempre cheia de surpresas: como bolsa de mãe e o bolso no paletó do pai. Eu fazia de conta que aquele calor todo não era comigo. Mas no meu quarto reconhecia o rumor do elevador que subia e espremia no cinzeiro um cigarro aceso e inteiro.

Lembro (mas como é que eu poderia esquecer?) da aflição de rir e do medo de chorar. Lembro, principalmente, de um menino num canto, de canivete e toco de madeira na mão, esculpindo, sem o saber um tempo perfeito ― tem de ser no verão, tem de custar caro ― que hoje chama de afeto.