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Contraste

Agora ou Nunca - Devolução

Paisagens audiovisuais de Maureen Bisilliat
(IMS Poços)


Devoluções

Rachel Rezende*

De temerosa responsabilidade o debruçar sobre as tradições de um país. Pelos erros e acertos, pelo que não vi, e pelo que vi e não captei, peço compreensão.
Maureen Bisilliat

Reconhecida no meio das artes visuais como a fotógrafa de um certo Brasil atemporal e profundo, sobretudo o dos indígenas e sertanejos, Maureen Bisilliat, no entanto, não fotografa há mais de 30 anos. Além de supervisionar mostras de seu acervo fotográfico, divide-se, desde o fim da década de 1980, entre gestão cultural, realização de fotolivros e documentários.

Nos últimos oito anos, Maureen dedicou-se diariamente, com o suporte do editor Felipe Lafé, à organização de toda sua produção audiovisual. Em paralelo, documentou reencontros com pessoas e lugares fotografados no passado, incorporando-os ao material. O ponto final dessa aventura pessoal é o documentário Equivalências – Aprender vivendo, narrativa que borra as fronteiras entre vida íntima e profissional, apresentadas como partes do mesmo processo de amadurecimento criativo. Em 2015, o IMS adquiriu os arquivos que dariam origem ao filme, finalizado em 2019, agregando-o ao acervo Maureen Bisilliat. Com o objetivo de organizar e disponibilizar também as experimentações mais recentes, Maureen passa então a dividir conosco o mergulho em sua particularíssima visualidade.

Há exatos 10 anos, o IMS Poços recebia a exposição retrospectiva Maureen Bisilliat – Fotografias, sua primeira mostra em parceria com o Instituto Moreira Salles, exibida anteriormente no IMS Rio e em São Paulo. Era o início de um contato intenso com a equipe de Fotografia do IMS. Ao longo deste tempo, o trabalho em seu acervo, 16 mil itens adquiridos pelo ims em 2003, revigorou a persona fotógrafa de Maureen, e se desdobrou em muitos projetos conjuntos: montagens e adaptações, parcerias e colaborações com outros curadores, instituições, feiras e festivais, produção de livros e de conteúdo digital, no Brasil e no exterior.

Mas quem conhece a inquieta artista “irlandesa-calabresa-brasileira”, como ela própria se define, adivinharia que uma década não seria comemorada com uma previsível retrospectiva ampliada. Agora ou nunca – Devolução apresenta um panorama de seu repertório de imagens em movimento, ao mesmo tempo que ecoa a corajosa experiência de autorreflexão compartilhada, em plena consonância com as práticas, especialmente dos muito jovens, do presente.

Desde que pela primeira vez teve uma câmera de vídeo em mãos, Maureen filma: percursos, conversas, o cotidiano silencioso; o que pode e o que tem exercitado cada vez mais com as câmeras de telefone celular. A conscientemente impossível apreensão do real, com tudo que esta tentativa carrega de poético, é oferecida agora por Maureen ao público. Editados em hd, os nove vídeos desta mostra foram produzidos a partir de formatos originais diversos, como película 16 e 35 mm, Betacam, vhs, super vhs e mini dv, em documentários para a tv, vídeos institucionais e outros voltados para circulação cultural; curtas e longas-metragens.

A mostra que chega a Poços de Caldas foi originalmente pensada para uma das salas do IMS Paulista e exibia exclusivamente audiovisuais, 12 deles. O generoso espaço desta galeria dupla nos dá a chance de ampliar a ideia inicial, apresentando, ainda que de forma panorâmica, relações construídas entre a materialidade e a imagem digital, que são a essência do pensamento criativo de Maureen hoje. Os que veem seu trabalho pela primeira vez terão a oportunidade de conhecer três de suas mais célebres equivalências literárias, Guimarães Rosa, Euclides da Cunha e Ariano Suassuna. Na única forma expositiva que a tem estimulado, a não convencional: na beleza rude dos “lambe-lambes”, em grandes painéis ou na imagem em pleno surgimento das chapas de impressão.

Acervos trabalhados em ilhas de edição entregam, de saída, um problema: fazem emergir imagens, apontando novas possibilidades de olhar e de abordagem. Mas podem, igualmente, acusar engajamentos não alcançados, esvaziar relevância, potencializar a angústia do não realizado. As obras aqui reunidas são o resultado do enfrentamento dessa questão. Seleção e opções de montagem foram norteadas pela intenção de revelar dimensão desconhecida de uma carreira, mas que não quer esconder seus erros, que valoriza ensaios. Estão expostas, desbragadamente, dúvida e inquietação.

Para Maureen, cuja fotografia sempre priorizou mais o sentimento do encontro que a técnica, não existe precariedade; instabilidade é linguagem, a urgência de comunicação, a matéria do trabalho. A’8h21gora ou nunca. Negando-se cineasta, declarando ter sido uma “fotógrafa acidental”, aos 89 anos, Maureen Bisilliat segue se afirmando uma artista contemporânea.

* Rachel Rezende trabalha na coordenadoria de Fotografia do IMS e divide com Maureen Bisilliat a concepção da exposição Agora ou Nunca - Devolução.