Lima Barreto estreia no Portal da Crônica
4 de setembro DE 2020 | Equipe IMS
O Portal da Crônica Brasileira completa no dia 12/9 dois anos no ar. E comemora com estilo. Na sexta-feira 11/9, véspera do aniversário, publica a primeira de uma série de 20 crônicas de Lima Barreto. A iniciativa tem o objetivo de dar visibilidade a uma faceta menos popular do autor, mais conhecido como romancista e contista, levando sua obra a um universo amplo de leitores.
"Os leitores que acompanham diariamente o Portal da Crônica, muitos pelo celular, talvez não tenham outra oportunidade que não seja esta de conhecer o trabalho de cronistas. Dar esta difusão a escritores do início do século, prestigiá-los, é prestigiar o acervo de literatura como um todo", diz a coordenadora de Literatura do IMS, Rachel Valença.
O romancista de Triste fim de Policarpo Quaresma era um cronista prolífero. Apesar de ter morrido jovem (aos 41 anos, em 1922), escreveu 440 crônicas – "uma quantidade absurda", ressalta Rachel. É um conjunto que faz um retrato vívido do Rio de Janeiro das primeiras décadas do século passado, e que ela e Beatriz Resende, professora titular do Departamento de Letras da UFRJ, organizaram para publicação nos dois volumes de Toda crônica (Agir, 2004).
Beatriz, cuja tese de doutorado versa sobre Lima Barreto, assina a apresentação e a cronologia que acompanharão a estreia do autor no portal. Ela chama atenção para a variedade de temas do cronista, que observava tudo o que ia pela então capital da República.
"O que acho mais importante das suas crônicas são as que tratam dos males da cidade", diz ela. "É imperdível, e importantíssimo, o registro que faz da reforma urbanística do prefeito Pereira Passos. Era um homem que andava pela cidade inteira, que vê com olhos críticos os gastos do município, que fala na cidade partida.""
Beatriz também nota um fato curioso. Apesar de ser tratado com frequência como misógino, porque implicava com as feministas, tem toda uma fase em que faz a defesa das mulheres, como na crônica Não as matem (em que pede: "deixem as mulheres amar à vontade"). Também falou de questões de raça e discriminação.
Rachel faz coro, e indica o caminho que norteou sua seleção para publicação no portal. "As crônicas dele são muito atuais, apesar de um século nos separarem delas. Além da violência contra a mulher, fala muito da desigualdade social, questões que continuam lamentavelmente atuais. Queremos dar ao leitores de agora a noção da importância desse escritor que morreu muito jovem, teve uma vida cheia de percalços, mas conseguiu produzir uma obra espetacular."
A crônica de estreia é Esta minha letra..., publicada originalmente na Gazeta da Tarde em 28 de junho de 1911, e será acompanhada de uma versão em áudio, lida pelo ator Luiz Octavio Moraes. Nela, Lima Barreto reclama da falta de cuidado dos tipógrafos que não entendiam sua letra. Ele entregava aos jornais e revistas os textos manuscritos, e estes eram publicados com trechos muitas vezes ininteligíveis.
"Isso o desgostava muito. Ele externa sua tristeza por não ser digno de uma boa revisão, e, nessa queixa, vinha embutida uma reclamação sobre o preconceito contra ele", observa Rachel, que diz ter percebido, com esta crônica, o quanto era necessário fazer uma revisão muito cuidadosa dos textos do autor, que assumia ter uma letra ruim.
O Portal da Crônica Brasileira foi criado para divulgar a obra dos autores no acervo do instituto, como Paulo Mendes Campos e Otto Lara Resende, mas logo, através de parcerias, ampliou seu espectro para outros escritores fundamentais no gênero, como Rubem Braga, Fernando Sabino e Clarice Lispector (cujos acervos estão na Casa de Rui Barbosa) e Antonio Maria. Com um total de 2.882 crônicas em imagens digitalizadas de recortes de jornais, revistas e livros, já publicou mais de 750 delas, uma por dia, digitadas para facilitar a leitura.
Lima Barreto é só um dos primeiros cronistas do início do século XX a entrarem no portal. Os próximos devem ser João do Rio e Benjamin Costallat, outros dois grandes observadores dos costumes do Rio de Janeiro. Editor do portal desde sua criação, Humberto Werneck nota que foi uma fase de cronistas-jornalistas. O gênero surgido em meados do século XIX nos folhetins franceses ganhou aqui adeptos como Machado de Assis, e aos poucos foi pegando um "jeitinho brasileiro".
"Quando eu penso na Idade Média da crônica, vejo duas pessoas notáveis, o Lima Barreto e o João do Rio, precursores da reportagem", diz Werneck. "Naquela época não se usava sair. Os jornalistas ficavam nas redações, um amigo passava, contava o que tinha visto, e era publicado. A reportagem não existia. Quem inventou um pouco esse gênero literário entre nós foi Lima Barreto, e, com mais força, o João do Rio. Essa coisa de olhar a vida aparentemente miúda e tirar dessa miudeza a coisa grande."