Eucanaã Ferraz explora universo de Clarice
21 de outubro DE 2021 | nani rubin
Clarice Lispector era engraçada. Amava bichos e plantas. Era uma excelente amiga dos seus amigos. Estava longe de ser uma intelectual. Gostava de pintar, como um gesto de explosão que prescindia de palavras. Transformava pequenos personagens da vida cotidiana em grandes personagens de sua obra. E fazia isso excepcionalmente bem com mulheres. O poeta e ensaísta Eucanaã Ferraz fala entusiasticamente da autora e sua obra, que estudou minuciosamente nos últimos dois anos, ao lado da escritora Veronica Stigger. Os dois são curadores da exposição Constelação Clarice, que esteve em cartaz no IMS Paulista de 23/10/2021 a 27/2/2022. Ao longo deste texto, o leitor poderá assistir a trechos da entrevista concedida aos jornalistas Alfredo Ribeiro e Nani Rubin.
Constelação Clarice celebra uma das mais importantes escritoras brasileiras de forma original e instigante, à altura da pessoa que era e da obra que produziu. Nada de narrativas biográficas, com fotografias, manuscritos e primeiras edições. Não que não seja legítimo contar visualmente a vida de um grande escritor. Na verdade, isso também estará lá, mas não é a espinha dorsal da mostra, que se organiza de outro modo. Diante das muitas possibilidades sugeridas pela produção da autora, decidiu-se, em conversas com o diretor artístico do IMS, João Fernandes, construir uma exposição em que se fala de Clarice reunindo a sua obra à arte de seu tempo. No caso, a arte de mulheres contemporâneas da autora de A paixão segundo GH, no período em que ela produziu: dos anos 1940 a 1970.
"Excetuando-se um ou outro, como o narrador de A hora da estrela, as grandes personagens de Clarice são todas mulheres, e mulheres nada excepcionais", diz Eucanaã. "São donas de casa, pintoras, escultoras, mas que têm uma vida muito comum: envolvidas com o marido, os filhos, em fazer comida, com a vida classe média extremamente banal. Será que as mulheres contemporâneas de Clarice não estariam vivendo experiências semelhantes à dela? Quem eram essas mulheres? O que elas produziam? Era muito instigante a ideia de que havia uma possibilidade de coincidência entre elas."
Para dar a cara da exposição, os curadores identificaram grandes linhas de força da obra, o que Eucanaã nomeia como "as questões claricianas", e a partir delas estabeleceram oito núcleos, dispostos nos dois últimos andares do prédio da Avenida Paulista de forma labiríntica. Trata-se, em sua abordagem, de uma concepção do espaço mais feminina, que faz um contraponto ao ângulo reto associado à racionalidade, ao masculino, como explica no trecho a seguir da entrevista:
Eucanaã assinou também a curadoria de outra grande exposição no IMS, Chichico Alkmim, fotógrafo. Mas, diferentemente daquela, em que partiu de algo bem concreto – a produção de estúdio do profissional que registrou cidadãos e costumes da Diamantina na primeira metade do século XX –, nesta ele observa que o "campo de liberdade é enorme".
"É uma exposição que tem uma mão curatorial fortíssima", diz. "É uma exposição de interpretação de Clarice, em que a leitura dos curadores é muito flagrante. Para ter uma ideia, a gente começa com ovo. Ovo e abstração."
O ovo a que se refere (nas obras de Celeida Tostes das séries Ninhos e Ovos, sem data) está numa espécie de prólogo da mostra, a que foi dado o nome de 'Tudo no mundo começa com um sim'. O visitante que chegar ao sétimo andar do IMS (por onde se inicia o percurso da exposição, continuando pelo sexto) vai se deparar, no primeiro ambiente, com uma única obra em bronze da escultora Maria Martins, Calendário da eternidade (1952-53); em seguida, verá as pinturas da própria Clarice ao fundo – a curadoria conseguiu reunir 18 telas da escritora. Eucanaã, no trecho a seguir, comenta as aproximações de Clarice com mulheres artistas e seu interesse pela pintura:
Assim como 'Tudo no mundo começa com um sim' os núcleos da exposição têm todos títulos tirados dos escritos da autora. 'Eu não cabia' fala da casa, um tema fundamental em Clarice – é onde suas personagens moram e se relacionam com a família. Em seguida, 'Perdi minha formação humana' ("quando nessa casa acontece alguma coisa que provoca o desmonte do sujeito", explica o curador); e, então, 'Adoração pelo que existe', em que ela expressa seu amor pelo mundo, os seres viventes. O quarto núcleo tem o título potente de 'Quero o plasma'. "É uma espécie de radicalização da adoração pelo que existe", diz Eucanaã. "Porque o que existe de animal, planta, tudo isso está organizado biologicamente, o plasma é como se fosse o núcleo de tudo."
A seguir, 'Mais um grafismo do que uma escrita' faz alusão à literatura como busca de dar nova forma ao mundo. A vida é sobrenatural trata da parte mística, componente forte na obra de Clarice. O sétimo núcleo, 'É paixão minha ser o outro', aborda a atenção de Clarice para o mundo social. E aqui, Eucanaã faz questão de afirmar que a autora-tema da exposição não estava dissociada do mundo que se apresentava a seu redor.
"Durante muito tempo houve um mal-entendido, achou-se que Clarice, por ser uma escritora psicológica, era como se ela não visse o mundo. Clarice vai falar de personagens que você não sabe muito bem onde se situam, num momento em que o romance social, o regionalismo, eram muito fortes, com denúncia social. Parecia que ela era uma escritora alienada. E nunca foi. Nem como pessoa nem nos textos dela."
Por fim, o oitavo núcleo, 'Não posso acabar', traz, ao lado das obras de arte, uma série de fragmentos de Um sopro de vida, livro que deixou inacabado ao morrer, em 1977. É importante ressaltar que os escritos de Clarice, ao longo da exposição, têm o mesmo tratamento das obras de arte. Trechos de suas obras ocupam o mesmo espaço que as obras, na mesma perspectiva. Não ilustram pinturas, esculturas ou fotografias, tampouco são ilustrados por elas.
Além da apresentação e dos oito núcleos, a mostra ainda tem dois ambientes chamados de 'O apartamento me reflete', I e II, cada um num dos andares da exposição. É aí que estão expostos itens do acervo pessoal da escritora, que estavam em sua casa no Leme, Zona Sul do Rio. São primeiras edições de seus livros, fotografias, manuscritos, obras de arte, discos, revistas e jornais com os quais colaborou, suas máquinas de escrever, cartas e objetos. Um universo que espelha, além da escritora, a pessoa que ela era:
A constelação que dá nome à mostra começou a se compor depois de definidos os temas, quando foram atraindo artistas e obras específicas, "como um íma", define Eucanaã.
É assim que Lygia Clark, que em princípio, nota Eucanaã, não teria nada a ver com Clarice, comparece com várias peças, entre elas da série Bichos (1960/1961), suas célebres esculturas em alumínio com dobradiças – "como as frases de Clarice, que se dobram e se desdobram; ela fala uma coisa, depois se desdiz, fala outra". Uma tela de Djanira, Mulher olhando na janela (1950), reina no núcleo sobre a casa.
"Parece coisa de Clarice, uma mulher vendo o mundo lá fora, como se ela estivesse sendo chamada pelo mundo. O mundo não é lindo, o mundo não é fácil. Mas a casa também não é. Ela sofre, tem o marido opressor, os códigos, as máscaras, os papéis… Então, quando você põe essa Djanira numa exposição da Clarice Lispector, não é só uma mulher olhando pela janela. É uma transição entre dois mundos."
Com a mostra Constelação Clarice, o IMS Paulista abrigará, simultaneamente, de forma inédita, duas exposições sobre escritoras. No mesmo local está em cartaz Carolina Maria de Jesus: um Brasil para os brasileiros. Não é coincidência. Eucanaã conta que foi algo desejado e pensado pelo curador João Fernandes, vindo de experiências nos museus Serralves, no Porto, e Reina Sofía, em Madri. Ele viu ali a oportunidade de exibir ao publico acervos que já normalmente mais acessíveis a pesquisadores:
Constelação Clarice se apresenta de maneira sedutora para o visitante, ao reunir obras de 26 artistas visuais mulheres. Há muito de Maria Martins, entre elas a escultura Sombras/ Anunciação (1952) e de Fayga Ostrower, pinturas de Wanda Pimentel, Maria Polo, Anna Bella Geiger e Judith Lauand, vídeos de Leticia Parente, fotografias de Vera Chaves Barcellos e Claudia Andujar, xilogravuras de Maria Bonomi (de quem Clarice era muito amiga) e de Wilma Martins. E ainda Mira Schendel, Amelia Toledo, Regina Vater, Iole de Freitas, entre tantas.
São nomes que dificilmente estariam reunidos numa exposição de arte com uma curadoria pensada a partir de linguagens ou relações formais. "Elas não conversariam entre si", admite Eucanaã. Mas em Constelação Clarice gravitam em torno dos temas da escritora de forma orgânica e atraente, não como ilustração, mas como um pensamento que corria paralelamente ao da escritora. A exposição, ao lado da de Carolina Maria de Jesus, reafirma o compromisso institucional do IMS de dar visibilidade a seus acervos de escritores, nem sempre sedutores do ponto de vista plástico, nota Eucanaã no trecho abaixo.
Nani Rubin é jornalista e integra a Coordenadoria de Internet do IMS
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