Carolina Maria de Jesus:
Um Brasil para os brasileiros
Texto da curadoria
Hélio Menezes e Raquel Barreto
"Diga ao meu povo brasileiro
O meu sonho era ser escritora"
Carolina Maria de Jesus
O título desta exposição foi inspirado no nome de um manuscrito inédito da escritora Carolina Maria de Jesus (1914-1977). Ela atribuiu a autoria ao político e jurista Ruy Barbosa, um homem branco que pertencia às elites dominantes deste país, com seus históricos privilégios de classe, raça e gênero. Carolina, porém, mudou o sentido: seus brasileiros são outros, e, como ela, são negros/as e pobres − sujeitos rasurados da história oficial.
Uma versão deste manuscrito foi publicada primeiro na França, em 1982, sob o título Journal de Bitita, com o nome da autora alterado para “Maria Carolina de Jesus”. No Brasil, o livro saiu em 1986 como Diário de Bitita, uma tradução direta do francês, sem nenhuma relação com o título dado pela autora. Entre o livro publicado e os originais, observam-se alterações profundas na estrutura do texto, omissões e até mesmo inclusão de trechos. Uma desautorização discursiva que permitiu que seu texto fosse profundamente modificado, sem seu consentimento.
Nesta obra, Carolina evidencia um de seus múltiplos qualitativos: a de intérprete literária do país, que disputa uma leitura acerca de nossa formação social e reflete sobre um projeto futuro de país com cidadania plena, liberdade e igualdade racial, com destaque ao direito à educação e à moradia.
Calculamos que a obra tenha sido escrita ao longo das décadas de 1960 e 1970, em função de duas menções localizadas em entrevistas no referido período, o que leva a crer que este tenha sido um projeto ao qual ela dedicou bastante atenção durante muito tempo.
Tomamos, assim, um caminho inverso ao das usuais abordagens que a consideram como autora de um livro só, o Quarto de despejo. Para isso, consideramos o conjunto de sua produção, que incluía quase seis mil páginas manuscritas, a maioria inéditas, documentos históricos, os depoimentos de sua filha Vera Eunice e a leitura da bibliografia a seu respeito. Essa pesquisa revelou uma escritora de obra extensa, consistente, com um projeto estético literário definido.
A exposição se estrutura textual e visualmente na letra da escritora, de forma literal e figurada. Optamos por apresentar o texto tal qual aparece nos originais. O que significou trabalhá-los diretamente em sua versão em letra cursiva, evitando ao máximo empregar os livros publicados que, de forma geral, sofreram alterações e se distanciaram dos manuscritos. Pedaços da fome, seu único romance até agora publicado, tinha como título original A felizarda − alteração feita a contragosto da autora, por evidente interesse comercial em explorar a imagem da “escritora da fome”, mesmo quando Carolina escrevia sobre outros assuntos.
A personagem criada pela imprensa da "escritora favelada" se sobrepôs à própria escritora, eclipsando o fato de Carolina ter escrito poemas, romances, contos, crônicas, diários, peças de teatro, textos memorialísticos e letras de música. O que resultou numa interpretação de sua obra moldada por uma parte de sua biografia, os cerca de 15 anos que viveu na favela do Canindé. Um tempo e um espaço que, isolados, não dão conta da complexidade de sua produção literária e artística.
A exposição organiza-se em 16 núcleos, reunindo excertos, livros, cadernos manuscritos, fotografias, periódicos, vídeos e documentários, em diálogo com obras de 69 artistas visuais brasileiros/as, realizadas entre 1951 e 2021.
Carolina foi uma escritora profícua, uma multiartista, que estabeleceu uma tradição estética e literária de alcance internacional, com reverberações no tempo presente. Uma mulher negra que, apesar de todas as adversidades estruturais e materiais, foi protagonista de sua própria história. E, a partir dela, reescreveu a história de todo um país.