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Apresentação

Texto de Hélio Menezes e Raquel Barreto, curadores da exposição ►

Texto de João Fernandes,  diretor artístico do IMS ►


Bitita Livre

Carolina nasceu em Sacramento, MG, em 14 de março de 1914. Sua vida no vilarejo inspirou Um Brasil para os brasileiros, ficção de caráter memorialístico narrado por uma menina negra, a Bitita - apelido familiar da escritora. O livro a acompanha na infância e no início da juventude, antes da chegada a São Paulo, na década de 1930. A obra apresenta um microcosmo das relações sociais e raciais do pós-abolição, a partir do olhar de Carolina sobre eventos da própria vida, como quando conta ter sido presa, junto com a mãe, pelo fato de portar um livro.

Carolina e sua família percorreram várias cidades do interior de Minas Gerais em busca de trabalho e melhores condições de vida. Da genealogia da autora, sabe-se que sua mãe chamava-se Maria Carolina de Jesus, e seu pai, João Cândido, porém é seu avô, Benedicto José da Silva, conhecido como o Sócrates Africano, a figura marcante para a autora. Ela atribui a ele seu gosto pelas letras e a formação de sua conduta moral.

Os documentos históricos de Sacramento revelam uma região de forte presença negra, que desenvolveu espaços próprios de sociabilidade, como clubes, bailes de carnaval e congadas. Contam também histórias de fuga e busca pela liberdade, como a de José, criança liberta e depois reescravizada sob o nome Francisco, em 1852.

Hoje, o município de Sacramento possui o maior acervo de manuscritos de Carolina Maria de Jesus. São mais de cinco mil páginas, a maioria delas inéditas, contendo romances, contos, crônicas, poesias, letras de música, peças de teatro, diários e outros escritos da autora.


Carolina, mãe

A maternidade teve lugar central na vida pessoal e na escrita de Carolina Jesus. Seus filhos João José (1949-1977), José Carlos (1950-2016) e Vera Eunice (1953) foram também seus personagens diletos. Não à toa, a data que inspira o início dos diários que deram origem a Quarto de despejo é o aniversário de sua filha, a menina que segue a mãe nas itinerâncias pela cidade. É ela quem conhecemos no primeiro parágrafo, que se tornaria icônico ao tomar objetos do cotidiano, como pães e sapatos, como figuras de linguagem capazes de unir temas como vida pessoal, errância, resquícios da escravidão e penúria.

A maternidade foi para a escritora, apesar de todas as privações materiais, um espaço de afeto e cuidado. A rotina pesada, contudo, não deixava lacuna para a romantização, também sendo apresentada como um lugar de conflito subjetivo, interrupção da escrita, de enunciação da mãe como sujeito político e, sobretudo, de ação, a partir da qual procurou garantir o bem-estar de seus filhos.

Nas fotos deste núcleo, temos a rara oportunidade de apreciar um pouco da intimidade do lar de Carolina, anos antes da fama. Os retratos colorizados de seus dois meninos, impressos sobre pequenas almofadas, exibidos aqui, pertenceram à própria escritora. Foram feitos no início da década de 1950, antes do nascimento de Vera Eunice, que se queixava de não ter fotos da infância. Em reportagem de 1952, é possível observar que os referidos retratos decoravam seu lar e acompanhavam seu inseparável rádio de pilha. A mesma publicação trazia fotos de seus filhos ainda bebês e registros mais delicados de seu lar.

 Carolina Maria de Jesus. 1962. Foto de Rubens. Coleção Arquivo Público do Estado de São Paulo, Fundo Jornal Última hora, São Paulo ⓒ FolhaPress.

Poetiza preta, escritora favelada: Carolina e a Imprensa (1940-1963)

A imprensa cumpriu papel ambivalente na trajetória de Carolina. Para contornar o racismo do mercado editorial, que a ignorava, ela adotou a estratégia de procurar redações de jornais e tentar divulgar seus escritos. Em 1940, conseguiu a primeira reportagem conhecida: "Carolina Maria, poetiza preta", com destaque para o poema "O colono e o fazendeiro". Na fotografia que ilustrava o texto, aparecia sorridente, altiva e com os cabelos à mostra, distante da imagem que a popularizaria duas décadas depois. Seguindo a mesma estratégia, conseguiu publicações em 1942, 1950 e 1952, entre editoriais irônicos e elogiosos. Data dessa época a publicação do poema "Getúlio Vargas", em O Defensor, periódico favorável à eleição de Vargas à presidência.

A imagem de "poetiza preta" se transformou profundamente com as reportagens escritas pelo jornalista Audálio Dantas, em 1958 e 1959. Nelas, o público foi apresentado à personagem da "escritora favelada", com conotação pejorativa. Essas matérias funcionaram como uma pré-recepção ao livro, definindo-o erroneamente como um documento sociológico.

Esse tratamento seria reproduzido em publicações sensacionalistas, que a tornaram objeto de curiosidade, algumas profundamente racistas. Nos EUA, a Time publicou um artigo (1960) que se preocupou mais em evidenciar sua biografia do que o livro, tecendo comentários sexistas sobre sua vida afetiva. Ainda hoje, apesar do reconhecimento internacional e da importância de sua literatura para o país e o mundo, o tratamento dado pela imprensa oscila entre o exotismo e a excepcionalidade, o classismo e a fascinação.

Carolina Maria de Jesus. 23 de agosto de 1960. Acervo UH/Folhapress

Quarto de despejo

Quarto de despejo foi um fenômeno editorial, chegando a mais de 200 mil exemplares vendidos da primeira edição. O lançamento, em 19 de agosto de 1960, bateu recordes de venda e público, reunindo uma audiência diversa, como moradores do Canindé, intelectuais, imprensa e o ministro do Trabalho, Batista Ramos.

As traduções do livro foram quase imediatas. As primeiras, já em 1961, para a Dinamarca, Holanda e Argentina. No total, existem 18 traduções. Estima-se que mais de um milhão de cópias tenham sido vendidas até hoje ao redor do mundo.

O livro rompeu fronteiras culturais e ganhou traduções para línguas não tão usuais para escritores brasileiros, como catalão, persa, japonês e húngaro. Alguns idiomas, por questões geopolíticas, ganharam mais de uma tradução, como alemão, inglês e espanhol.

As capas chamam atenção por reproduzirem uma convenção visual reincidente sobre a autora, muito parecidas entre si, ou com uma representação de favelas em seu lugar. Os títulos também variam, revelando alterações profundas do original, como nas traduções para o inglês: "Filha do escuro" e "Para além da piedade".

O sucesso de Carolina no exterior a levou a realizar viagens para a promoção de seu livro, participando de eventos na Argentina, no Uruguai e no Chile. Da viagem à Argentina, resultou um diário publicado na versão portenha de Casa de alvenaria, ainda inédito em língua portuguesa.

 A escritora Carolina Maria de Jesus no Aeroporto de Viracopos, em viagem até o Uruguai para acompanhar o lançamento de seu livro "Quarto de Despejo". Campinas, SP, 13/12/1961. Foto Arquivo/Estadão Conteúdo

Vedete da favela

Com o sucesso do livro Quarto de despejo, Carolina encontrou a oportunidade de realizar o sonho de gravar um disco com canções de sua própria autoria. A música era parte de seu cotidiano; com seus filhos, cantavam e tocavam violão juntos em casa, e ela vivia ouvindo sambas, tangos argentinos e valsas vienenses. Acompanhava tudo pelo rádio, onde também costumava ouvir radionovelas.

O álbum Quarto de despejo – Carolina Maria de Jesus cantando suas composições foi lançado pela extinta gravadora RCA-Victor, em 1961, mas não acompanhou o êxito comercial do livro. Todas as composições são de sua autoria, os arranjos e a direção artística couberam a Júlio Nagib. O disco incursionou por variados gêneros musicais, como as marchinhas, o samba e o partido-alto. O conteúdo das letras mantém relação com algumas das temáticas que aparecem em sua produção textual, como os problemas das favelas, a pobreza (“Moamba”), desigualdades sociais (“O pobre e o rico”) e questões de gênero, fazendo uma espécie de crônica de costume (“Pinguço”). O destaque é "Vedete da favela”, em que a autora parece ironizar a si mesma e sua nova condição social, após se mudar da favela do Canindé: “Conhece a Maria Rosa?/ Ela pensa que é a tal.../ Ficou muito vaidosa/ Saiu seu retrato no jornal.../ [...] Salve ela, a vedete da favela”. A música foi regravada pela cantora Virginia Rodrigues, em 2019.


Ruth virou Carolina

Em 1961, Quarto de despejo foi adaptado para o teatro, com roteiro de Edy Lima, que transformou o diário em uma peça, dirigida por Amir Haddad e com assistência de Eduardo Coutinho. Cyro del Nero fez a cenografia da peça, representando o Canindé de forma mais realista, sem a usual mitificação da favela nas produções artísticas da época, o que lhe rendeu importantes prêmios.

Em cena, um elenco de aproximadamente 40 atores, em sua maioria pessoas negras que nunca haviam atuado, selecionadas a partir de anúncios de jornal para representar os moradores do Canindé. O núcleo principal era formado por artistas conhecidos, como Célia Biar e Maurício Nabuco.

O papel de Carolina coube à atriz Ruth de Souza, que em 1983 voltaria a interpretá-la na TV para um episódio do programa Caso Verdade – a atuação que mais orgulho lhe deu na carreira. A “personagem Carolina” acabou tornando-se presente no teatro e no cinema. Várias atrizes interpretaram o papel. Uma das atuações mais marcantes foi a de Zezé Motta no curta Carolina (2002), de Jeferson De. As atuações se aproximam em construir um retrato de Carolina muito marcado por uma certa indumentária, um jeito de corpo e pelo lenço branco cobrindo os cabelos.


Quarto de despejo: diário de um país

Quarto de despejo pode ser interpretado como uma narrativa discordante da ideia de "Brasil, país do futuro”, uma denúncia ao nosso processo de modernização excludente e conservador, que deixava grande parte da população à margem.

A ideia de desenvolvimento em voga no período, base do projeto do presidente Juscelino Kubitschek (1956 1960), pretendia industrializar e "modernizar” o país em cinco anos. 1960, ano da fundação de Brasília, a nova capital do país, símbolo do futuro, coincide com o lançamento de Quarto de despejo. O tom oficial de otimismo contrastava profundamente com as páginas do livro, que cobriam quase os mesmos anos e denunciavam as condições de pobreza extrema. Cada um desses acontecimentos representou interpretações bastante divergentes de Brasil.

As metáforas de construção e arquitetura que dão título a Quarto de despejo e Casa de alvenaria revelam as contradições de um crescimento acelerado e desigual de São Paulo. Refutando a ideia de locomotiva do progresso, os livros apresentam outra São Paulo, longe da “sala de estar” e sintoma de um país dividido e violento. Exemplo disso é o Canindé: criada em 1948 pela própria prefeitura, a favela surgiu da remoção e do deslocamento de várias famílias afetadas pelo processo de urbanização da cidade, que, sem lugar para morar, foram transferidas para um terreno público às margens do rio Tietê. A região, que sofria de inundações constantes, não era própria para habitação, não oferecia canalização de esgoto nem água potável.


Ditadura, censuras (1964-1977)

"É próprio dos ditadores não gostar da verdade e dos negros”, Carolina comentou a respeito da censura a Quarto de despejo, em 1961, em Portugal e nos territórios ultramar, forma pela qual eram nomeadas as colônias portuguesas na África e na Ásia. O livro teve sua entrada proibida e censurada pelo regime de Salazar, via PIDE – a Polícia Internacional e de Defesa do Estado.

A escritora atribuiu a censura à sua cor e ao conteúdo do livro, de denúncia da miséria, que para ela existia tanto no Brasil como em Portugal.

A obra só foi lançada lá em 2021, e ainda não conta com edições em outros países de língua portuguesa, como Angola e Moçambique.

No Brasil, a autora também sofreu com a censura, instituída após o golpe de abril de 1964, que instalou a ditadura militar. O período também coincidiu com o afastamento da escritora da vida pública e o cerceamento dos debates políticos.

O conteúdo de Quarto de despejo passou a ser de alguma forma interpretado como subversivo, por evidenciar as desigualdades de um país partido. Foi, no entanto, em 1971 que a censura a afetou diretamente.

A diretora de cinema alemã Christa Gottmann-Elter convidou a escritora a interpretar a si mesma no curta-metragem O despertar de um sonho, no qual representava sua antiga rotina descrita em Quarto de despejo. As cenas se passavam na favela do Vergueiro, substituindo o Canindé que já não existia, num tom explícito e bastante sensacionalista sobre a miséria. Por contradizer o discurso ufanista do regime militar "de um país que vai pra frente”, o embaixador do Brasil na Alemanha proibiu sua exibição no Brasil. O filme só viria a ser apresentado no país em 2014, ano do centenário da escritora.


Depois da Alvenaria: a vida em Palheiros

Carolina morou por cerca de uma década na favela do Canindé. De lá, saiu sob ameaças e ataques dos vizinhos, que a viam como uma “traidora” após a publicação de seu primeiro livro. Provisoriamente, no final de agosto de 1960, residiu com os filhos na cidade de Osasco, no porão da casa de um empresário. Finalmente, em dezembro, ela conseguiu se mudar para a desejada casa de alvenaria que comprou em Santana, um bairro de classe média da Zona Norte.

Com o passar dos anos, as vendas dos livros diminuíram, os pagamentos das traduções escassearam e sua situação econômica tornou-se novamente instável. Não sendo possível manter o padrão de vida, decidiu mudar-se, no final de 1963, para o sítio que havia comprado em Parelheiros, no sul da cidade. Seu plano era viver com maior tranquilidade, plantando para seu sustento e retomando uma vida rural.

O distanciamento geográfico foi, de certo modo, um autoexilio, que a afastou definitivamente da convivência com os meios literários, onde nunca foi de fato integrada. A mudanca contribuiu para seu esquecimento em vida, embora eventualmente a imprensa lhe procurasse, no geral em tom de curiosidade e passadismo. Carolina nunca deixou de escrever; desta fase, destacam-se a criação de alguns romances ainda inéditos, como Dr. Silvio. Em dezembro de 1976, lançou a edição de bolso do Quarto de despejo, em bancas de jornais em São Paulo e no Rio de Janeiro.

Em fevereiro de 1977, Carolina teve um ataque de bronquite asmática e faleceu, com 61 anos. Seu enterro foi no Cemitério do Cipó, no município de Embu-Guaçu, a 40 km do centro de São Paulo.


Carolina e ativismos negros

Carolina expressou consciência e orgulho raciais em inúmeros textos e declarações. Sem ter sido militante, ao menos nos termos da época, sua presença despertava o debate racial nos espaços em que circulava. Possivelmente, seu primeiro contato com o movimento negro organizado deve ter ocorrido no final da década de 1930, quando foi a um dos encontros promovidos por José Correia Leite, figura importante da imprensa e do associativismo negros, onde apresentou poemas de sua autoria.

Após o lançamento de Quarto de despejo, Carolina, travou contato com diversas organizações e clubes negros, com o poeta Solano Trindade, com Oswado de Camargo e Heitor dos Prazeres; foi à Associação Cultural do Negro (ACN), ao Club 220, e ao Club Renascença, no Rio de Janeiro, tendo sido recebida com entusiasmo por lideranças negras em Porto Alegre.

Em setembro de 1960, a Níger – Publicação a serviço da coletividade negra, da ACN, prestou-lhe interessante homenagem, relacionando-a com a figura da mãe negra, então lida como símbolo de dignidade e integração nacional. Já em 1961, o Club 220 tentou criar o Ano Carolina Maria de Jesus, e conseguiu que lhe fosse concedido pela Câmara Municipal o título de “cidadã paulistana”, por meio de manifesto público. Em 1978, a série Cadernos negros, dedicada à publicação de contos e poemas de autoria negra, ganhou nome a partir dos famosos cadernos de Carolina.

Na atualidade, sua obra e figura seguem sendo fontes centrais na articulação de pautas e ações antirracistas, sobretudo entre o movimento de mulheres negras. Carolina virou sinônimo de voz contra o racismo, presente inclusive entre as frentes mais incandescentes do pensamento e prática radicais negras contemporâneas.


Carolina, presente!

Carolina Maria de Jesus é, incontestavelmente, um dos maiores símbolos políticos, literários e culturais do país. Sua relevância pode ser observada na forma como movimentos sociais que lutam pelo direito à cidade, à moradia, à educação, à igualdade racial e de gênero a têm como referência. 

Recentemente, vem ganhando o devido reconhecimento oficial pelo conjunto de sua produção literária e intelectual. Em 2021, a Universidade Federal do Rio de Janeiro The reconheceu o título de Doutora Honoris Causa. No entanto, há décadas Carolina é reconhecida por escritoras e escritores que compõem os movimentos da literatura periférica, negra, slams e saraus populares. Espaços onde sua poética mantém-se como combustível que alimenta a palavra viva, transformadora e pulsante. 

Carolina também circula como um ícone na cultura popular. No emblemático desfile de 2019, a escola de samba Mangueira, que apresentou e disputou outra narrativa de país, estampou seu rosto num grande estandarte, junto a uma nova bandeira brasileira, em verde e rosa, que, no lugar do lema positivista "Ordem e progresso”, incluiu o protagonismo de indígenas, negros e pobres. Os “brasileiros”, sujeitos rasurados da história oficial, que Carolina definiu em seu livro Um Brasil para os brasileiros