Nunca houve no mundo tanta gente desenraizada, apátrida, fora do lugar. Espécimes dessa humanidade errante povoam alguns dos filmes mais fortes da 44ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. Destaca-se entre eles o desconcertante Berlin Alexanderplatz (Burhan Qurbani), nova versão do livro homônimo de Alfred Döblin (1929), tido como um dos grandes romances alemães do século XX, e que já havia inspirado a monumental série de TV dirigida por Rainer Werner Fassbinder em 1980.
Ao trazer para os dias de hoje a trama do livro, que se passava nos conturbados anos pré-nazistas da República de Weimar, o alemão de origem afegã Qurbani operou uma mudança simples e decisiva: o protagonista teutônico Franz Biberkopf deu lugar ao negro Francis (Welket Bungué), refugiado da Guiné Bissau. Essa alteração étnica trouxe todo um novo sentido para a história. Hoje se diria que a ressignificou.
Quando começa o filme, o jovem Francis já tem um passado: foi ladrão, contrabandista, cafetão, e viveu um acontecimento traumático e obscuro com a mulher amada. Trabalhando agora como operário da construção civil em Berlim, ele tenta agir corretamente e conseguir um lugar decente na vida. Como diz outro personagem, Francis é “um homem que quer ser bom num mundo mau”.
Nesse mundo, é muito estreita a porta para os imigrantes pobres, especialmente se sua pele for escura. Rebatizado de Franz, o protagonista viverá sucessivas quedas e reerguimentos. A imagem da queda, no caso, é literal e simbólica, pois há toda uma ressonância religiosa no filme (a água, o sangue, alusões a Caim e Abel, a Lázaro, etc.). Trata-se tanto de um estudo sócio-político como de uma parábola moral.
Dividida em cinco partes, a narrativa dura três horas, mas não parece, pois nossa atenção é mantida não apenas pela profusão de acontecimentos e situações (trabalho pesado, tráfico, prostituição, gangsterismo), mas também pela vontade de saber como Francis/Franz se sairá de cada percalço desse calvário.
Cadeia de opressões
Na metrópole cosmopolita e multiétnica, a sociedade é mostrada como um jogo constante de poder, por isso um momento crucial é a cena em que Francis assume, com discurso idêntico, o papel de recrutador de africanos para o tráfico que, no começo do filme, era exercido pelo pequeno gângster Reinhold (Albrecht Schuch).
Reinhold, que se autodefine como “white trash” (lixo branco), é um dos personagens mais repulsivos do cinema contemporâneo. É o branco fracassado e humilhado que faz do seu ressentimento uma arma contra os que estão mais abaixo na escala social. É o instrumento ideal do novo fascismo que viceja hoje em tantas partes do mundo. Sua evidente impotência sexual o leva a exercer uma brutalidade psicológica e física sobre as mulheres. Na cadeia de opressões, a mulher objetificada é o elo mais frágil.
Os matizes da pele – do preto retinto Francis à alvíssima Mieze (Jella Haase), passando pela negra clara Eva (Annabelle Mandeng) – são realçados a todo momento. Não há como esquecer que são elementos de identidade e diferenciação na Europa rica, como em quase toda parte.
E o filme tira todo proveito da figura imponente e vigorosa de seu ator principal, o guineense Welket Bungué, que atuou em Portugal e no Brasil (na novela Novo mundo e nos filmes Joaquim e Corpo elétrico). Enquanto seu corpo se debate com a matéria hostil do mundo, seu olhar parece conter ora uma fúria invencível, ora uma tristeza infinita. Impossível imaginar o filme com outro ator.
Outros apátridas
A santa do impossível (Marc Raymond Wilkins, Suíça). Dois adolescentes peruanos moram com a mãe no Bronx, Nova York, trabalhando como entregadores, e se apaixonam por uma linda colega de curso de inglês. A mãe, garçonete, tenta abrir um negócio próprio, incentivada pelo namorado. O contraste do sonho do empreendedorismo com a dureza da vida de imigrantes latino-americanos.
Casa de antiguidades (João Paulo Miranda Maria, Brasil). Quando é fechada a unidade do laticínio onde trabalha, em Goiás, o operário negro Cristovam (Antonio Pitanga) é deslocado para a sede da empresa, num vilarejo de colonização alemã no Rio Grande do Sul. Ali, ele é um forasteiro hostilizado como ser inferior. Retrato com tintas pesadas do nazismo latente em algumas partes do país (ou nele todo?) e da reação violenta contra ele.
https://www.youtube.com/watch?v=QKxnNSHZhLU
Glauber, Claro (César Meneghetti, Brasil). Vibrante documentário sobre o exílio de Glauber Rocha em Roma, em especial os bastidores de seu filme Claro (1975). Com rico material de arquivo e depoimentos de gente que participou da aventura, revela-se um artista do Terceiro Mundo que via Roma como a síntese e origem de todos os imperialismos.
Al-Shafaq – Quando o céu se divide (Esen Isik, Suíça/Turquia). Uma família de turcos muçulmanos que vive na Suíça tenta conciliar a adaptação à sociedade local com os preceitos da sua religião. Um dos filhos jovens da família, o mais introspectivo, engaja-se num grupo radical e viaja para a Síria para participar da “guerra santa”. O tema é semelhante ao de filmes recentes como O jovem Ahmed (dos irmãos belgas Dardenne) e Adeus à noite (do francês André Téchiné), só que aqui tratado “de dentro” por um turco radicado na Suíça.
Cidade-pássaro (Matias Mariani, Brasil). Um jovem nigeriano vem a São Paulo à procura do irmão que sumiu na cidade e deixou de dar notícia à família e à noiva. Na metrópole caótica, ele refaz os passos do irmão, revê seus lugares, amigos e amores. Ao mesmo tempo em que descobre o mundo dos refugiados, ele busca entender a mente delirante do irmão e verificar a natureza do vínculo entre os dois.
Tentehar – Arquitetura do sensível (Paloma Rocha e Luís Abramo, Brasil). Neste documentário dilacerante, a situação do imigrante se inverte: aqui é o povo originário que é discriminado, banido de sua própria terra. Os diretores acompanham lideranças guajajara (ou tentehar) em sua resistência contra invasores, ao mesmo tempo em que expõem o quadro mais amplo de retrocesso político, social e civilizatório que resultou na (e é resultado da) ascensão da extrema-direita ao poder.