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Os corpos gloriosos

13 de fevereiro de 2019

A Sessão Cinética apresentará, em fevereiro de 2019, Bom trabalho, de Claire Denis (França, 1999).

Cena de Bom trabalho, de Claire Denis

 

Em “Plan contre flux”, um texto já clássico no estudo de dicotomias cinematográficas, Emmanuel Burdeau fala-nos do cinema somático do “fluxo”, modulado pelo beat energético do plano-sequência, que captura os devires de um corpo; e um cinema (mais clássico) do plano fixo, do ponto de vista, da perspectiva universal, do cogito do sujeito do conhecimento. O cinema de Claire Denis sempre se inclinou mais para o fluxo, mas o acompanhamento de seus filmes por esses devires desregulados da matéria nunca lhe interditou o dever de coreografá-los, de submetê-los ao metro de uma dança etérea; antes pelo contrário: o contraste formal entre o energético e o substancial  sempre injetaram uma força inolvidável em seus estudos sobre corpos exilados de seu estado de natureza.

Em Bom trabalho, temos uma visão coreográfica dos corpos que se perseguem, se ferem de morte, se desejam sem mácula, sobretudo nas sequências de exercícios dos soldados da Legião Francesa e numa cena-chave, cuja música de fundo pertence à ópera de Benjamin Britten, Billy Budd, adaptada da última e mais ambígua novela de Herman Melville, inspiração essencial para o filme também. A novela conta-nos da obsessão fantasmática do capitão Verve pelo “boa-praça” sedutor soldado Billy Budd, que acaba enforcado pelo primeiro, e em suas entrelinhas fala-nos das tortuosas trajetórias do desejo, inclinado antes ao processo de consumição/consumação de seu objeto que à sua simples fruição – leitmotif central no filme de Denis igualmente. “Todo amante mata aquele que ama”, como diz Oscar Wilde.

Essa “correção” do cinema do fluxo pelo formalismo mais estrito de um metro coreográfico em Bom trabalho se hieratiza e desvitaliza um tanto, dando-nos nesses planos de conjuntos e vistas gerais soberbos dos torsos eretos e dos embates ensaiados entre os soldados – um traço de neoclassicismo, cuja decupagem precisa do filme arremata com sua ascese teoremática: os planos soltos, fluidos, pouco raccordados da anterior Claire Denis aqui se fixam em efígies de celebração de corpos gloriosos, retomando para a matéria animada do fotograma cinematográfico aquilo que na letra literária da obra adaptada segundo o espírito (Billy Budd, de Melville) permanecia entravado pela metáfora preciosista.

Bom trabalho é um dos filmes mais belos de Claire Denis porque a Beleza, pelo menos entendida por Michel Mourlet como manifestação épica do Espírito, é o seu tema orquestral mais decisivo: se o sargento Galoup quer destruir Gilles Sentain, ou de qualquer maneira eliminá-lo do mapa desejante de Bruno Forestier, o comandante, é também porque o seu físico raquítico enxerga no maciço torso de mármore do soldado um substituto mais digno hierarquicamente no espírito do homem mais velho, que deseja o soldado interpretado por Grégoire Colin. Galoup é aquele terceiro excluído que tudo resolve nas finitas equações humanas, porque vê em Sentain uma oferta de perfeição que jamais poderá devidamente emular, e portanto precisa ser expulsa do campo de visão de Forestier, a quem Galoup deseja de forma seminal o corpo e o posto. O exílio no deserto de Sentain e finalmente a morte não são mostrados por Denis, na medida em que o filme é também o produto da cabeça, imaginado e rememorado, de Galoup; basta o abandono na estrada, o pó sobre o corpo de Sentain e a oferta d’água ao moribundo para que completemos tudo com nosso imaginário, vetor de fora de campo.

Cena de Bom trabalho, de Claire Denis

 

O raccord de direção de olhar no cinema é, em termos fantasmáticos, mas também em grande medida narrativos, o vetor pelo qual se indica quem deseja quem, quem exclui quem, e é por sua vez desejado e excluído: uma borda decisiva, a partir da qual tudo se define em termos de ente desejante e desejado. O raccord é uma relação física entre planos (“interplanos”), inscrito na matéria do próprio filme, mas que mimetiza as implicações fantasmáticas que o Desejo tão frequentemente solicita. A direção do olhar do ator e sua correspondência, no contracampo que se segue, do olhar sobre o qual o anterior se destinara, constituem-se numa retórica do fantasma escópico, como diria Serge Daney: o objeto e o sujeito reciprocamente se imantam, como se assediam e se consomem, e o filme é o local dessa arena fremente.

Em filmes sobre o olhar (do Outro) e sua relação com o desejo, como Persona (Ingmar Bergman, 1966) e Bazar central (Central Bazaar, Stephen Dwoskin, 1976), é seguindo o fio de Ariadne do olhar que fenomenologicamente o filme se estrutura, porque o raccord é, desde os clássicos até sua transgressão com o faux-raccord nos contemporâneos, o médium através do qual o espaço do plano de cinema e o espaço mental do espectador possuem enfim um mesmo leito para habitar, complicado sempre, em um cinema muito energético como o de Denis, pelas escaramuças do plano-sequência. Em Bom trabalho, numa plaga desértica africana ocupada pela Legião Francesa, Galoup (Denis Lavant), o comandante Bruno Forestier (Michel Subor) e Gilles Sentain (Grégoire Colin) são os três olhares principais cujo raccord de direção entretece uma teia imantada pelo Desejo. Não é sempre o olhar um índex, barômetro, signo de uma Força desejante que se apossa desse órgão tão superficialmente pulsante, e lhe determina um destino?

O soldado Sentain está, é certo, no centro dessa arena onde o disputam Forestier e Galoup, com a problematização narrativa de que o olhar de Galoup o vasculha das profundezas do passado (ele, um ex-sargento da Legião Francesa, é o narrador da história, o seu contramestre narrativo, e, como todos os vencedores, detém a potência de sua enunciação); Bom trabalho é assim uma narrativa em abismo – ou seja, uma narrativa presente, atual, que se revela superposta à narrativa subjetiva, virtual, do sargento Galoup. Aquele instrumento de enunciação entre os três personagens principais que vai se encarregar de propor sua versão, decisiva porque única –, mas o neoclassicismo de que falei acima se afirma sobretudo por uma transparência de crônica de vilegiatura, de caderno de anotações do cotidiano da Legião, sublinhada à contraluz por momentos extáticos ou devaneantes, como o supracitado da música de Britten. Denis nunca força a mão do estilo, e embora o filme seja comandado pela voz off de Galoup (já aposentado da Legião Francesa, e na iminência do suicídio, como nos mostra a penúltima cena), esta não autoriza em nenhum momento um extravio suplementar na estrutura narrativa do filme, sempre límpida e causal. Esse é um dos gênios, aliás, de Bom trabalho: o equilíbrio ou equidistância entre a voz off que nos fala do passado e este mesmo passado restituído, sem sombra de retórica, pela carne de um presente que possui algo de imemorial: ambos convivem sem importunar a linha reta ou a nota exata um do outro, e, ao mesmo tempo, o filme guarda uma perturbação que nos é cristalizada estilisticamente pela rentreé triunfal do final, com Galoup (Lavant) na sua dança na boate, espécie de revanche do significante feérico e do morto sobre um filme que, até então, se mantivera sob a égide de uma clareza cristalinamente neoclássica, enfarruscada aqui e ali pelo êxtase de sua elocução épica.


Luiz Soares Júnior é crítico da revista Cinética.

 

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