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Criadores de paisagens

20 de julho de 2018

A Sessão Mutual Films é um evento bimestral com o propósito de criar diálogos entre as várias faces do meio cinematográfico, trazendo para o público, sempre que possível, filmes, restaurações e eventos inéditos em sessões duplas. A primeira edição do evento é intitulada Paisagens: James Benning e Clemens Klopfenstein. Serão exibidas as novas restaurações digitais dos filmes 11 x 14, de James Benning, e História da noite, de Clemens Klopfenstein.  

Uma paisagem é o que fazemos dela. O que apreendemos, como usufruímos e como transformamos nosso entorno. As paisagens nascem a partir da interação ambivalente entre ambiente e ser humano e expressam momentos distintos da evolução dessa interação. Analogamente, o registro da paisagem é o início e a base de qualquer meio de comunicação, e expressa diferentes momentos históricos.

Nos filmes 11 x 14 (1977), do norte-americano James Benning, e História da noite (1979), do suíço Clemens Klopfenstein, ambos filmados em 16 mm, observamos paisagens representativas de culturas distintas que também são reflexos das gerações do pós-guerra. No primeiro, construções imagéticas plácidas mostram uma realidade pacata e segura nos Estados Unidos. No segundo, imagens trêmulas, sem contraste, transmitem uma realidade precária e instável na Europa. Ainda que partindo de pontos de vista pessoais, ambos cineastas expressam visões recorrentes dos locais retratados. Novas restaurações digitais dos dois filmes serão projetadas em sessões duplas no Instituto Moreira Salles no mês de julho, como parte da nova mostra bimensal Sessão Mutual Films.

Cena do filme "11x4", do diretor americano James Benning: filme opera com senso de humor autorreferencial

Em 11 x 14, Benning registra, em cores, paisagens do meio-oeste estadunidense, frequentemente interligadas por deslocamentos de pessoas e automóveis. Nas três primeiras cenas do filme, vemos: no centro da imagem, um casal namorando diante de um muro, enquanto, na parte superior, um trem passa rapidamente, e, na inferior à direita, um carro para e dele sai, atravessando a imagem, um homem com uma criança no colo; um transeunte cruzando uma avenida cortada por dois viadutos; uma placa de trânsito alertando “não vire à direita”, e logo a câmera (em um movimento panorâmico) se desloca para a direita, delineando uma segunda paisagem atravessada por um muro e uma calçada onde, ao longe, algumas pessoas caminham.

Conforme o filme progride e as cenas se acumulam, narrativas são sugeridas por meio de reaparições, o homem que compôs o casal na cena inicial, posteriormente, aparece tomando café em uma cozinha, enquanto outra mulher lava a louça. Uma mulher andrógina, em uma cena, sai de um carro e, em outra, aparece em um quarto acariciando um corpo feminino nu, do qual vemos apenas as costas. Até a música “Black Diamond Bay”, de Bob Dylan, é tocada na íntegra duas vezes. O filme opera com um senso de humor autorreferencial e com prazer em mergulhar na criatividade que os locais inspiram. As suas cenas mais verborrágicas são de outdoors comerciais, que sintetizam a identidade americana em slogans como “Nós temos sua luz do sol” e “Eu conheço meu gosto”. Ainda, em tom hitchcockiano, são recorrentes outdoors do whisky J&B.

Em História da noite, Klopfenstein utiliza película em preto e branco supersensível para registrar cenas noturnas com uma câmera Bolex em cerca de 50 cidades europeias, entre elas Basileia, Dublin, Helsinque, Istambul e Roma. O mergulho na noite é introduzido com um trecho de Ulisses (1922), de James Joyce, em um intertítulo:

“Casas, linhas de casas, ruas, milhas de calçadas, tijolos amontoados, pedras. Mudando de dono. Este proprietário, aquele. O dono nunca morre dizem. Um outro mete os pés nos seus sapatos quando ele recebe ordem de partir. Eles compram o lugar com ouro e ainda assim eles têm todo o ouro. Alguma fraude nisso em algum lugar. Amontoados em cidades, esgotados século após século. Pirâmides na areia. Construídas à base de pão e cebola. Escravos da muralha da China. Babilônia. Grandes pedras deixadas. Torres redondas. Resíduo de cascalho, subúrbios esparramados, construídos às pressas. Casas de cogumelos de Kerwan construídas de brisa. Abrigo, para a noite.

Ninguém é nada.

Esta é a hora pior do dia. Vitalidade. Apática, deprimente: odeio esta hora. Sinto como se tivesse sido comido e vomitado.” (Tradução de Bernardina da Silveira Pinheiro. Rio de Janeiro: Objetiva, 2010, p. 189)

Uma das cenas do filme "História da noite", do diretor suíço Clemens Klopfenstein: imagens criam sensação fantasmagórica

Em História da noite, quarteirões de casas destruídas contrastam com edifícios monumentais, emblemáticos de um período que há muito tempo se extinguiu. Regiões são sugeridas por meio de palavras em cartazes em diferentes línguas. O cineasta utiliza um tom poético para conectar as paisagens urbanas como se fizessem parte de um único passeio. Andarilhos perpassam as imagens e, em alguns raros momentos, a câmera se aproxima de agrupamentos de pessoas, como jovens negros em um clube noturno e uma procissão religiosa. A imagem, porém, permanece silenciosa e distante, caminhando sem se envolver com o que observa. A instabilidade da câmera na mão se projeta nas paisagens, muitas delas desertas. Ela cria uma sensação fantasmagórica e voyeurística, como se alguém mais, além de nós, observasse as cenas.

Em seus longas de estreia, Benning e Klopfenstein, ambos com 35 anos ao concluírem os filmes, assumem perspectivas de observadores distantes para registrar a vida de cada local. Benning, um autodidata, escolheu os lugares e situações de 11 x 14 para que refletissem seus sentimentos de inflexibilidade e resistência da vida americana, que ele absorveu, em grande parte, por meio da cultura pop. Enquanto isso, Klopfenstein, pintor de formação, projeta uma sensibilidade modernista ao expor sensações de transformação e fragmentação da vida em cidades europeias.

Na justaposição desses filmes, com métodos independentes de produção similares, é possível notar como ambos refletem zeitgeists profundamente contrastantes, ainda que coexistindo em uma mesma época. Questões de pobreza e desigualdade social são deixadas implícitas, nos espaços que existem entre as imagens. Ao olhar para as obras, um espectador pode, em seu imaginário particular, construir realidades que somem o novo ao velho, atualizando essas paisagens que permanecem em transformação.

  • Aaron Cutler e Mariana Shellard são curadores da Sessão Mutual Films