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Era uma vez, num castelo assombrado

11 de setembro de 2017

 

Na quinta-feira, dia 28 de setembro, às 19h, o cinema do IMS Rio exibe Suspiria em cópia restaurada em DCP. Após a sessão, haverá um debate com os críticos da revista CinéticaNo IMS Paulista, o filme tem sessões nos dias 23/9 e 1/10, sem debate.

 

Ainda nos créditos iniciais, em tela preta, a suave voz masculina anuncia o plot enquanto tocam os acordes da banda Goblin: “Suzy Bannion decidiu aperfeiçoar suas técnicas de balé na mais famosa escola de dança da Europa. Ela escolheu a celebrada academia de Friburgo. Um dia, às 9h da manhã, ela deixou o aeroporto Kennedy, em Nova York, e chegou à Alemanha às 22h40, hora local.” Após os créditos, a primeira imagem é o painel eletrônico anunciando os voos que pousaram. Num travelling, a câmera se movimenta para a direita e enquadra várias pessoas no desembarque. O primeiro choque: a iluminação do lugar é avermelhada e antinatural. De partida, Suspiria – entre a trilha sonora intermitente, a narração descritiva e a fotografia colorida – nos instala num universo bastante específico: estamos num conto de fadas, e tudo pode acontecer.

Essa relação é constitutiva de Suspiria. O roteiro do filme tem assinatura do (então) casal Dario Argento e Daria Nicolodi. A inspiração veio dos relatos da avó de Daria sobre a época em que, jovem, foi estudar numa escola de dança cujas professoras eram praticantes de ocultismo e magia negra. Depois do sucesso de Prelúdio para matar (Profondo rosso, 1975), Argento estava com vontade de variar sua abordagem no terror. Encontrou na bruxaria o tema que lhe interessava, e na avó de Daria a gênese de uma mitologia. Tendo realizado uma série de gialli (filmes policiais italianos de mistério e assassinato) nos cinco anos anteriores, Argento só experimentou efetivamente o cinema de horror com Suspiria, lançado em 1977. O impressionante nesse seu primeiro passeio pelo horror é que Argento pega a rota da narrativa feérica, colocando a si mesmo no papel de orador (“falando” por imagens e sons) para amedrontar a quem o vê e ouve utilizando estímulos audiovisuais exacerbados. Para isso, o diretor transita pelos sentimentos das personagens (e não por seus arcos dramáticos) e os transfigura em imagens de pavor. Com isso, deixa-se hipnotizar pelo fascínio com os ambientes e as luzes e com os espaços e a música. Importam pouco (quase nada) os desdobramentos narrativos de Suspiria, ou sua intriga e suas revelações. A apresentação oral, no off dos créditos, tem muito mais o objetivo de resgatar o indefectível “Era uma vez…” das histórias infantis do que localizar o espectador num eventual estopim de enredo.

Suspiria é um devaneio ilimitado por situações simultaneamente escabrosas e maravilhosas das construções visuais de Argento. Ele é habilidoso no profundo controle de cada cena, no barroquismo e no excesso de movimentos e cores, gritos e perseguições, na extravagância das mortes e no nojo dos vermes que despencam do teto. A “princesa” do filme é Suzy (Jessica Harper), jovem doce e sonhadora, sugada para um pesadelo repleto de portas misteriosas, quartos abandonados, paredes ultravermelhas de desenhos geométricos, mordomos mudos e sombrios, mitos assustadores e passos noturnos que atravessam as paredes. A escola de dança é um castelo assombrado, de passado nebuloso, marcado pela bruxaria e por segredos inconfessáveis nas madrugadas secretas das mulheres que o administram. Não há príncipes salvadores nessa fábula: as garotas tomam a ação para si, ora sendo condenadas por suas ousadias, ora invadindo terrenos para onde não foram convidadas, causando mudanças drásticas no status quo.

Argento não busca o controle absoluto da narrativa (como Alfred Hitchcock), nem a moral que comanda o mundo (segundo Fritz Lang), tampouco o maneirismo das imagens (marca de Brian De Palma). O diretor italiano se vincula a outro mestre: Mario Bava, precursor do cinema de horror na Itália ao codirigir com Riccardo Freda, em 1957, o cultuado Os vampiros (I Vampiri). Nos anos 1930 e 1940, o fascismo proibira a produção de filmes de terror no país. Somente na segunda metade dos anos 1950 é que alguns cineastas decidiram encarar o que era visto como tabu. O sucesso de Os vampiros e a experiência de Bava com fotografia o tornou o mais celebrado realizador do gênero na época. Ele dirigiu títulos essenciais, como A maldição do demônio (La maschera del demonio, 1960), As três máscaras do terror (I tre volti della paura, 1963) e justamente aquele que virou referência para os gialli que se notabilizaram na década seguinte: A garota que sabia demais (La ragazza che sapeva troppo, 1963), por muito tempo conhecido no Brasil como Olhos diabólicos. Quando estreou na direção, em 1971, no giallo O pássaro das plumas de cristal (L’uccelo dalle piume di cristallo), Argento deixou explícito o fascínio pelo estilo de Bava, mas já apontava outros caminhos que pretendia seguir. Suspiria é o ápice e a depuração da herança baviana, que aparece no prazer proporcionado pela imaginação e na liberdade de trafegar por um mundo de regras espaciais próprias – algumas delas distantes das leis do outro mundo (o real) que nos cerca. Exemplos são sucessivos: uma personagem é atacada no quarto, e no plano seguinte ela está ainda sendo atacada, só que no corredor do prédio; outra garota perseguida tenta escapar pulando por uma janela, e então a câmera revela um emaranhado de cabos cortantes logo abaixo. Mas Suspiria também nos lembra constantemente de aflições próximas a nós: toda morte é causada por algum objeto, instrumento ou criatura que nos permite identificar o tipo de dor provocada. A ambientação é de fantasia, as angústias são de um sonho ruim.

Cena de Suspiria

O filme herda dos gialli do próprio Argento a relação entre memória e acontecimento, ou a encarnação de uma imagem que, represada no fundo das lembranças e bloqueada pelo trauma, é retomada em momento-chave do enredo. O leitmotiv típico argentiano (que ele, ao seu modo, absorve do seu assumido fascínio por Blow-up, de Michelangelo Antonioni): ao chegar à escola, durante uma tempestade, Suzy ouve uma garota (assassinada algumas cenas depois) balbuciar palavras, mas não entende exatamente o sentido do que ela diz. Ao longo de todo o filme, Suzy tentará se lembrar ou conectar as falas da vítima, sabendo que ali estará a resolução de sua busca. Só que não basta recordar: é preciso ter instrumental suficiente para fazer as conexões. Enquanto a personagem não estiver minimamente no mesmo ponto em que estava a garota morta, de nada adiantam as palavras. O quebra-cabeça proposto pelo filme, então, é falso, pois ele só se resolve com informações externas e até então ausentes. Argento coloca em dúvida a própria natureza dessa imagem que volta, dessa lembrança que insiste em se estabelecer como mais um dado a atormentar Suzy. A busca pela imagem esquiva se relaciona diretamente, afinal, ao imaginário de Daria Nicolodi e das histórias de sua avó. Pois Suspiria é exatamente uma junção entre quimeras, por isso mesmo heterogêneo e sem limites. A experiência do filme não é só a de assistir a ele, mas principalmente a de vivenciá-lo, de habitar os devaneios de Suzy, de se relacionar afetivamente com a força da arquitetura oferecida por Argento. A pictorialidade do filme nos hipnotiza não só pela beleza das imagens e pela concatenação com o trabalho de música e som, mas porque é também um aspecto de submersão em um universo de encantamento, no qual o vermelho, o azul e o amarelo convivem harmoniosamente com a morte e em que o sorriso só é possível diante do alívio de um castelo em chamas.

A fotografia de Suspiria, captada por Luciano Tovoli com técnicas de sobreposição de películas, é outra personagem no filme. Argento disse em entrevistas que suas referências visuais foram os desenhos animados de Walt Disney e as paletas hipersaturadas do Technicolor usado pelo cinema norte-americano dos anos 1930 e 1940. Também herança de Bava – especialmente do alucinado Seis mulheres para o assassino (6 donne per l’assassino, 1964) –, a utilização das cores como estética reforça a adesão ao fantástico de Suspiria e subverte a tradição do filme de horror, até então muito mais relacionado ao preto e branco ou ao uso comedido e expressionista da luz para ocultar ou distorcer elementos do cenário. No filme de Argento, quanto mais cores, mais perigo, terror e encantamento