A mostra Vestígios e ruptura: o cinema de Sergei Loznitsa, que inclui eventos com a presença do diretor, acontece no IMS Paulista (2 a 14/10) e no IMS Rio (4 a 14/10).
Neste ano de 2018, o diretor Sergei Loznitsa destacou-se pelo incomum lançamento de três filmes de longa-metragem num período de oito meses, com estreias mundiais nos festivais de Berlim, Cannes e Veneza. Atualmente, creio que apenas o sul-coreano Hong Sang-Soo tem mostrado estâmina comparável e consistência autoral nesse tipo de escala.
Os três filmes de Loznitsa este ano – Dia da Vitória, Donbass e O processo (The Trial) – revelam uma voracidade pelo registro no seu trabalho, que tem como foco geográfico a Rússia atual e o peso histórico da União Soviética. Também utilizam as ferramentas modernas do cinema como ponto de vista humano e de documentação para filmar fantasmas de uma identidade social congelada num tempo histórico recente.
Sua obra – composta por curtas, médias e longas-metragens, realizados em filme e em digital ao longo dos últimos 20 anos – revela também uma mistura particular de observação e de dramatização, dos dois lados da fronteira documentário/ficção. Loznitsa não propõe a discussão doc/fic, ele apenas embaralha essas divisões com desenvoltura no seu modo de filmar.
Os episódios registrados por Loznitsa são evidentes nos seus documentários, mas também mostram-se presentes nas suas encenações reconhecidas como ficção, ou, se preferir, filmes que seguem uma lógica narrativa clássica e que dão a seus personagens o crédito de “atores”.
Bloqueio
A minha porta de entrada para a obra de Loznitsa aconteceu há cerca de dez anos com Bloqueio, um documentário montado a partir de filmes arquivados na Cinemateca de São Petersburgo (Leningrado), onde ele trabalhou. As imagens, todas realizadas como registro histórico de época durante o cerco a Leningrado pelos nazistas (1941-1945), documentaram os quatro anos que sufocaram a cidade, num clima crescente de fome e terror.
Loznitsa sonorizou esse material de arquivo (originalmente mudo) com efeitos impressionistas, uma tapeçaria sonora que lembra uma canção de ninar ruidosa sobre uma normalidade urbana que vai sendo violentada de maneira prosaica.
É curioso que exista em Bloqueio o filme de guerra, não tanto de confrontos, mas de resultados do terror. Ao final desse filme poderoso, a comemoração pela liberação da cidade, os fogos de artifício e um senso de vitória e rostos sorridentes. O filme, no entanto, vai além, mostrando-nos que o pós-conflito não é feliz, e que a herança histórica é composta por horrores.
Observando os primeiros filmes de Loznitsa, eles sugeriam uma documentação. Elementos humanos, arquitetônicos, próximos à abstração de tempo e espaço (A fábrica, A estação de trem). Na década passada, seus filmes passam a sugerir uma mudança de registro, na qual ele vira um observador que discorda das versões oficiais.
Há algo próximo do trabalho de um historiador e provas processuais baseadas, em grande parte, na atenção que ele dá aos rostos de pessoas nos seus filmes. Os rostos na feira popular de Minha felicidade (2010), nas multidões de Maidan (2014) e em O evento (2015).
Neste último, uma imagem incrível, contrabandeada sem alarde para o filme: um jovem Vladimir Putin saindo de um prédio em São Petersburgo como agente da KGB, no ano de 1991, no apagar das luzes da URSS. Um registro notável num documentário sobre a história recente russa.
As pessoas de uma nação contam a história, se não verbalmente, como provas de vida e de ação, violência e submissão, e a brutalidade torna-se um elemento incontornável nos filmes de narrativa dramatizada com atores por Loznitsa. Do corpo jogado numa betoneira como imagem de abertura em Minha felicidade ao plano final de Uma criatura gentil, a imagem da Rússia de Vladimir Putin não é terna, vista por um cineasta que canaliza uma raiva inegável para registrar e dramatizar pesadelos observados.
No seu momento atual, Sergei volta-se para a encenação como arma política. Os registros históricos feitos por ele nos últimos dez anos, ao que me parece, abrem espaço para uma urgência difícil de ignorar. “Enquanto trabalham no financiamento do próximo filme, eu faço um novo documentário”, disse Sergei no último Festival de Cannes.
Ucraniano de criação, mas natural da Bielorrússia, Loznitsa mora em Berlim. Ele tem 54 anos. Seus filmes são ambientados na Rússia, mas são filmados na Ucrânia e na Letônia, que dublam perfeitamente a Rússia e a URSS. Ele tem o toque pessoal de borrar não apenas os elementos de paisagem, mas também o tempo de suas ações.
Seus três filmes de 2018 configuram uma observação e tanto para o estado de coisas atual, um certo clima que tomou o mundo com a descrença pela verdade, e a incapacidade crescente de a sociedade reagir à verdade.
Em Dia da Vitória, uma multidão de nostálgicos da URSS reúne-se no parque de Treptower, em Berlim, para viver imagens, signos e ideias do regime comunista. Donbass (em registro ficção) trabalha com dramatizações políticas para a TV e internet (com atores) estimuladas pelo poder. O cenário é o conflito violento no leste da Ucrânia, sob a sombra da intervenção russa, ganhando contornos de surrealismo numa guerra que é real.
Incrivelmente, em seu último filme, O processo, Loznitsa volta aos arquivos para observar um julgamento no ano de 1930 – sob o regime de Stálin –, fartamente documentado em 35 mm, no qual os réus ensaiaram suas participações numa simulação de justiça “para um bem maior” e com a conivência da França. São filmes sobre o passado e o presente, e que deixam fortes dúvidas sobre a vida social e política no futuro.
Trazer um recorte especial da obra de Sergei Loznitsa para o Brasil, e tê-lo conosco para masterclasses e diálogos com o público no IMS Paulista e no IMS Rio, nos parece relevante pelo cronista e crítico que ele tem sido de uma região onde muita história foi condensada em tão pouco tempo. E uma região especialmente rica em versões distintas da sua história, durante e após a União Soviética. Loznitsa é um observador da história social.