Nestes tempos de confinamento, em que o risco real da depressão paira sobre corações e mentes, recordo uma passagem de Hannah e suas irmãs (1986) em que, à beira do suicídio, o personagem Mickey, vivido por Woody Allen, entra num cinema para se distrair. O filme que está passando é O diabo a quatro (Leo McCarey, 1933), com os Irmãos Marx, e não apenas salva Mickey do suicídio como o faz ver a vida com outros olhos.
É possível que todos nós já tenhamos passado por uma experiência análoga. Em todo caso, eu já passei. E tenho meu acervo pessoal de filmes salvadores. Às vezes basta lembrar uma sequência, uma cena, uma piada, para sorrir sozinho e pensar: “Ah, até que a vida vale a pena”.
Cada leitor/espectador/cinéfilo terá, com certeza, sua própria antologia. A minha começa justamente com um momento luminoso de dois dos Irmãos Marx, Harpo e Chico, tocando ao piano uma versão aloprada da marchinha de carnaval “Mamãe eu quero”, de Vicente Paiva e Jararaca, em Casa maluca (Charles Reisner, 1941).
Quando se fala de humor, é claro que Chaplin entra por todos os lados. Gênio absoluto da comédia muda, o ator e diretor resistiu o quanto pôde à palavra em seus filmes. Só veio a falar propriamente na tela em O grande ditador (1940), treze anos depois do advento do sonoro. Mas antes disso Carlitos já havia cantado: quase ao final de Tempos modernos (1936) ele nos brindou com esta sequência maravilhosa, cantando numa tresloucada mistura de línguas. Aos talentos de ator, mímico, dançarino e diretor, acrescentou os de cantor e “letrista”.
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Outro grande gênio da comédia muda, Buster Keaton, produzia graça sobretudo pelo acúmulo de acidentes, riscos e desastres dos quais saía invariavelmente ileso, ou quase. A célebre sequência da motocicleta desgovernada em Sherlock Jr. (1924) é uma das mais deliciosas.
O humor italiano, em especial o das comédias de costumes de Mario Monicelli e Dino Risi, é tiro certo contra tendências suicidas. Uma das minhas lembranças favoritas é da sequência da torre de Pisa, em Quinteto irreverente (Monicelli, 1982), com os fabulosos Ugo Tognazzi, Philippe Noiret e Adolfo Celi:
Até mesmo o humor sádico pode ser libertador, quando transfigurado pela fantasia delirante de um Frank Oz, como na sequência do dentista de A pequena loja dos horrores (1986), remake musical do clássico trash de Roger Corman (1960). Aqui, além da direção inventiva de Oz, brilha o talento de Steve Martin.
Comédia popular brasileira
A comédia popular brasileira também tem uma tradição forte, que remonta à chanchada e se baseia predominantemente no veio paródico e no gênio de alguns atores (Oscarito, Grande Otelo, Mazzaroppi, Renato Aragão). O cinema novo, que nasceu como reação à chanchada e ao academicismo da Vera Cruz, era em geral avesso à comédia, mas quando, afinal, esse casamento se deu, em Macunaíma (Joaquim Pedro de Andrade, 1969), foi algo lindo de se ver. Não por acaso, quem mais brilha no filme, ao lado de Paulo José, é Grande Otelo, astro da chanchada, que aqui aparece na saborosa e antropofágica cena do Curupira.
A lista poderia continuar indefinidamente. Filmes salvadores incluem de Levada da breca (Howard Hawks, 1938) a Um peixe chamado Wanda (Charles Crichton, 1988), de Quanto mais quente melhor (Billy Wilder, 1959) a Queime depois de ler (Joel e Ethan Coen, 2008), de Meu tio (Jacques Tati, 1958) a Um convidado bem trapalhão (Blake Edwards, 1968), de Ser ou não ser (Ernst Lubitsch, 1942) a Os irmãos cara de pau (John Landis, 1980). Cada cidadão terá o seu catálogo hilário-afetivo pessoal.
Mas em termos de efeito euforizante talvez nada supere a sequência de Cantando na chuva (Stanley Donen e Gene Kelly, 1952) que dá título a este texto, protagonizada por um Donald O’Connor em estado de graça. Se você assistir e nem esboçar um sorriso, procure o CVV.