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Mandacaru vermelho

07 de janeiro de 2019

Em janeiro de 2019, como parte da retrospectiva integral da filmografia de Nelson Pereira dos Santos, os cinemas do IMS exibirão Mandacaru vermelho. No IMS Rio, o filme será exibido nos dias 12 e 15/01; no IMS Paulista, haverá sessões nos dias 19 e 23/01. A retrospectiva acontece ao longo de 2019 e foi iniciada em novembro de 2018.

Considerado um filme “menor” em razão das circunstâncias de produção, Mandacaru vermelho pode e deve ser reavaliado quanto sua posição histórica e sua relação com o restante da filmografia de Nelson Pereira dos Santos. Como resultado de uma primeira tentativa frustrada de levar às telas de cinema uma adaptação do romance Vidas secas, de Graciliano Ramos, o filme sempre foi visto como uma improvisação ligeira, pouco convicta e sem maior valor artístico, visão externada pelo próprio realizador, que se comprazia em depreciar sua performance como o “mocinho” do drama.

Reexaminado em um iPhone quase 60 anos depois de seu lançamento em 1960, a partir da versão restaurada em 2007 por Francisco Sérgio Moreira, Mandacaru vermelho reverbera melhor do que se poderia imaginar para um “filme de aventura”, designação genérica da época para enredos envolvendo fugas, escapadas e um sempre adiado embate final. A fluidez narrativa emanada da pequena tela confirma certos problemas de andamento e leitura visual detectados quando se assiste a ele em tela grande. A lembrança de tempos truncados na montagem do exímio Nello Melli indicava uma suposta inabilidade do diretor, o que não se confirmou na revisão mais atenta do filme. E nem poderia, dada a consciente opção momentânea por Melli, em detrimento do montador regular de Nelson na primeira fase de sua carreira, o também extraordinário Rafael Justo Valverde. A decupagem de fundo clássico, de resto irrepreensível, só encontra problemas estritos em alguns poucos ângulos reversos e na introdução abrupta dos flashbacks, o que revela a estratégia e a preparação prévias para uma narrativa dinâmica, decalcada em suas linhas básicas do western de perseguição.

Parte dos problemas de ver o filme em sua configuração original em 35 mm se encontra no interior dos planos, divididos entre o tratamento estético da paisagem e as demandas da ação dramática. A exuberância da fotografia de Hélio Silva, tecnicamente seu melhor trabalho até então, de fato “rouba” a cena. O espectador se distrai dos acontecimentos, o que é reforçado por um roteiro que não esmiúça conflitos, psicologias ou simbolismos, e por interpretações em geral bastante limitadas, com a possível exceção do protagonista proposto pelos créditos, Miguel Torres, que se vê eclipsado pela inserção do jovem diretor como coprotagonista, no personagem que de fato logo conduz o enredo, em uma composição enrijecida e pouco à vontade. A opção por uma produção popular de mercado confunde a função do estereótipo, resvalando, em muitos momentos, para o decalque, a caricatura pouco densa. Além disso, por baixo da linha de ação, a perseguição em si, o fundo melodramático e a dimensão mítica propostos não se desenvolvem a contento, ou simplesmente não se desenvolvem.

Jurema Penna e Mozart Cintra em cena de Mandacaru vermelho

Por outro lado, não se pode esquecer alguns elementos que estão na raiz de Mandacaru vermelho, a começar por sua vinculação com Vidas secas. As condições de produção do filme efetivamente realizado haviam sido pensadas para o projeto afinal suspenso por conta das chuvas e do averdejamento da caatinga. Acrescentaria também, sem muita chance de erro, uma percepção de inadequação estética do sertão baiano com as imagens propostas por Graciliano, daí a busca por uma suposta realidade imediata ao romance na terra natal do escritor (o romance foi inventado,
em verdade, quando o escritor já morava no Rio de Janeiro). Entre essas condições, estão o uso da câmera Arri, uma novidade para Nelson no campo da ficção, particularmente em situações de mobilidade (deslocamentos e panorâmicas), e principalmente a presença ostensiva de maquinaria. Mandacaru vermelho é um filme carregado de travellings, talvez a primeira produção brasileira que faça uso sistemático e intenso de trilhos e carrinho como recurso técnico, narrativo e dramático. A variação da marcação é tão grande que parece trair um ensaio de possibilidades para o futuro projeto mais ambicioso. Não é exatamente novo na obra de Nelson, por se relacionar com a estratégia de mudança de eixo narrativo encontrada em Rio, 40 graus, feita pelo deslocamento da câmera durante a ação, em detrimento do corte de ponto de vista narrativo. Porém, em Mandacaru vermelho, a câmera de desloca muito mais, por vários motivos e com diversos efeitos narrativos e dramáticos. Tal estratégia, para além da experimentação em si, representa a incorporação definitiva da modalidade ao repertório expressivo do cineasta, que o usaria daí por diante de forma parcimoniosa, e do cinema brasileiro em geral.

A conjugação da moldura de perseguição, com ação incessante e violência inaudita para os padrões locais (apenas Mãos sangrentas, lançado em 1955 por Carlos Hugo Christensen, revela na época de maior brutalidade na encenação de diferentes atos violentos), é outro elemento distintivo da produção. A mescla inscreve Mandacaru vermelho no subgênero que viria a ser conhecido como Nordestern, do qual é um dos primeiros exemplares e legítimo representante. Embora seja também, nesse sentido, um filme de cangaço, pouco remete à obra gênese de Lima Barreto, do qual partilha apenas a referência ao western, aqui bem mais pronunciada, nem tanto pela presença de elementos típicos como winchesters, cavalos e “pradarias”, e sim pela remissão a títulos, personagens e mesmo espaços específicos da filmografia estadunidense do gênero. O recorte que interessa a Nelson envolve uma mistura de western psicológico, matriarcal, noir e de perseguição, da qual dispensa por óbvias limitações financeiras e de produção a possibilidade de deslocar parte da ação para o exterior/noite, o que implicaria em uma fotografia low-key (escura, penumbrosa, “enluarada”, recortada) de difícil execução em locação sem recursos vultosos. Embora atenuado, o elemento matriarcal (e feminino) está na raiz do roteiro desenvolvido. Basta pensar em obras como Duelo ao sol (King Vidor, 1946), com o qual compartilha o duelo final na montanha de pedra e a alta voltagem sexual subliminar, O diabo feito mulher (Fritz Lang, 1952), em que o estupro de uma noiva conduz a ação, e Johnny Guitar (Nicholas Ray, 1954) e Dragões da violência (Samuel Fuller, 1957), com suas fazendeiras vingativas e violentas. Como estrutura, a remissão a Sua única saída (Raoul Walsh, 1947) surge imediata, com a perseguição, a psicologia freudiana, os flashbacks, o massacre familiar, o problema da terra e os conflitos entre famílias. Nelson maneja bem o caldo de referências, introduzindo aqui e ali algum elemento novo, como a sugestão de um conflito geracional, envolvendo os mais “jovens”, que se mostram determinados e rebeldes, algo curioso no limiar da explosão juvenil dos anos 1960, e revelando mais uma vez o apreço por sua formação através do cinema hollywoodiano, idolatrado por seu pai, embora o projeto maior fosse a crítica e a superação do modelo de produção e da estética desse cinema.

Sônia Pereira, Ivan de Souza e Nelson Pereira dos Santos em cena de Mandacaru vermelho

Nesse sentido, Mandacaru vermelho surpreende ainda mais, tendo em vista o background comunista do diretor e seu interesse por um cinema que trouxesse à tona um retrato do Brasil até então invisibilizado pela filmografia local. A presença do Nordeste e do cangaço soam como meros elementos decorativos, pois suas questões – miséria, fome, exploração, posse da terra – mal são apontadas e jamais exploradas dramaticamente, como se estivessem sendo guardadas para a retomada do projeto em torno de Vidas secas. A inserção de elementos tipicamente locais fica por conta de uma inusitada ressurreição sob a forma de beato, lembrando prédicas à la Antônio Conselheiro, mas em chave ligada a psicologismos de trama conjugal, praticamente sem dimensões políticas mais relevantes. E também à violência em si, as lutas, principalmente as corporais, que lembram por demais a estética maureana. Aparentemente seguindo as lições do mestre, os embates são marcados por um crescente desnudamento dos corpos, ficando as vestimentas mais e mais rasgadas (algo impensável para as lutas com roupas engomadinhas e impecáveis do cinema “americano”), o que lembra os confrontos masculinos de Tesouro perdido (Humberto Mauro, 1927) – para o qual o fotógrafo Edgar Brasil chegou a desenhar um cartaz em que o aspecto visual mais destacado era este – ou Ganga bruta (Humberto Mauro, 1933), e a velada sugestão pauloemiliana de um homoerotismo subjacente a essas sequências. A relação de “dominação” do irmão/personagem mais velho frente ao mais novo, o consequente rito de passagem via conflito e o sacrifício ou triunfo do mais novo ao final constituem de fato a superfície mais visível e talvez a trama mais relevante de Mandacaru vermelho, o que, tomado em uma dimensão histórica e simbólica, sublinha a ascensão de um cinema e de um país que se propunham efetivamente como novos a esta altura. O divertissement talvez não seja mesmo tão “menor” assim.


Hernani Heffner é conservador-chefe da Cinemateca do MAM, pesquisador e professor de história do cinema em diversas universidades e cursos livres como a Universidade Federal Fluminense, Fundação Getúlio Vargas, Fundação de Artes do Paraná e Puc-Rio. Escreveu mais de 100 verbetes para a Enciclopédia do Cinema Brasileiro, assim como dezenas de artigos e textos para catálogos, revistas e livros.

 

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