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O mito fingidor

13 de junho de 2019

Um “mito”, quando o epíteto se refere a uma pessoa viva, é alguém que, para o bem ou para o mal, catalisa pulsões, desejos e medos de toda uma época, de toda uma cultura. É o caso, sem a menor dúvida, de Bob Dylan. Só que, quanto a Dylan, trata-se de um mito que se desmonta e reconstrói a cada momento, num jogo de máscaras e metamorfoses que, no campo da cultura de massa, só encontra paralelo em outro mito contemporâneo, David Bowie.

O suposto documentário Rolling Thunder Revue: A Bob Dylan Story, de Martin Scorsese, que entrou em cartaz ontem (12 de junho) na Netflix, ao mesmo tempo ilumina e obscurece esse processo de autoconstrução permanente.

Não por acaso, as primeiras imagens que vemos são de um curta de Méliès em que o cineasta-prestidigitador faz desaparecer e reaparecer uma mulher. É esse papel mágico e enganador do cinema que será atestado – e questionado – nas duas horas e pouco que se seguirão.

 

 
Documento e ficção

A um olhar ingênuo ou desinformado, o filme parecerá apenas mais um documentário musical, recuperando material de arquivo de uma turnê (a Rolling Thunder do título, realizada em 1975) e entremeando-o com entrevistas de participantes do evento que ainda estão vivos, entre eles o próprio Dylan. Mas não é o que parece.

Os registros de época, que no filme de Scorsese são atribuídos a um cineasta rabugento chamado Von Topp ou algo assim, foram extraídos na verdade de um longa-metragem dirigido pelo próprio Dylan em 1978, Renaldo and Clara, que por sua vez já misturava documentário e ficção.

O sujeito apresentado como cineasta em Rolling Thunder é, na verdade, o ator Martin von Haselberg, marido de Bette Midler – que também aparece no filme, ao lado de um sem-número de celebridades, do poeta Allen Ginsberg à compositora e cantora Joni Mitchell, passando por Patti Smith, Sam Shepard, Joan Baez, Sharon Stone e o boxeador Rubin “Hurricane” Carter. O político democrata amigo de Jimmy Carter, por sua vez, não é outro senão o ator Michael Murphy.

A turnê em si já é um caleidoscópio espetacular, um mergulho na contracultura norte-americana num momento profundamente traumático da vida do país, logo após Watergate e a “expulsão humilhante” dos americanos do Vietnã, e poucos anos depois do fim do sonho hippie, da dissolução dos Beatles, da morte de Hendrix e Joplin etc. É um road movie por uma América entre anestesiada e atordoada, que aquela trupe de malucos (a expressão não é exagerada) vem agitar.

 

Fraturas da América

Todas as fissuras e fraturas daquela sociedade vêm à luz: as tensões raciais, as reivindicações ancestrais dos índios, o conflito de gerações, as contradições da cultura popular-industrial, as drogas, o sexo e, claro, o rock’n’roll. Há um certo clima de ressaca, de consciência de que o auge daquela efervescência já havia passado, de que se vivia quase uma paródia desencantada da revolução dos sixties.

O que impede, porém, o filme de resvalar para um mero registro melancólico é, justamente o seu jogo ficcional, no limite do metalinguístico, que a certa altura nos faz questionar o que é real e o que é inventado naquilo tudo. Como se Scorsese nos mostrasse que o passado, assim como a personalidade de Dylan, pode ser incessantemente reinventado, embaralhado, tornado potente de novo.

A certa altura, Sharon Stone, que na época da turnê tinha 19 anos, diz que foi com a mãe ver um show de Dylan, e que este a convidou para acompanhar a trupe na continuação da excursão. Na parada seguinte, conta ela, Dylan lhe disse que tinha feito uma canção em sua homenagem. No show, ele canta “Just Like a Woman” e durante o refrão olha para ela, que  se debulha em lágrimas até ficar sabendo que a canção tinha mais de dez anos.

A história em si já é divertida, mas e se for inteiramente inventada? Só o que vimos foram fotos em preto e branco da jovem Sharon com uma camiseta da banda KISS. Todo o resto construímos na nossa cabeça, a partir dos depoimentos de Sharon e de Dylan, que podem muito bem ser combinados e mentirosos. Cinema é ilusão, como sabemos desde Méliès e sua dama oculta.

 

Palavra e música

Mas cinema é verdade também, e desse amálgama de imagens reais e falsos depoimentos surge uma leitura rica, vívida, da cultura norte-americana pós-1960. Nessa leitura, uma figura se eleva, no filme, quase à mesma altura de Dylan: o poeta Allen Ginsberg.

Há uma relação curiosa entre os dois poetas, ao menos no modo como emergem no filme: Ginsberg parece querer ascender da palavra à música, ou melhor, fazer as palavras virarem música, e Dylan, na sua forma de cantar, dá a impressão de querer despir o que há de melódico nas canções, gritar as palavras, torná-las mais duras, menos melodiosas, faca só lâmina.

Repete-se em vários momentos o célebre verso inicial de Uivo, de Ginsberg: “Vi as melhores mentes da minha geração destruídas pela loucura”. A mente de Bob Dylan foi ao fundo da loucura, mas sobreviveu em plena lucidez, graças em grande parte ao humor, à autoironia e à automitificação. E Martin Scorsese, que já havia retratado o início da carreira do bardo em No Direction Home (2005), é parceiro e cúmplice deste novo capítulo de sua reinvenção.