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O valor da terra

03 de setembro de 2019

A sessão Mutual Films de setembro, com os filmes Salmo vermelho e Ghashiram Kotwal, é dedicada à memória da filósofa húngara Ágnes Heller, morta em julho de 2019, que dedicou a carreira à luta contra o totalitarismo, e ao cineasta humanista indiano Mrinal Sen, pioneiro do Cinema Paralelo, morto em dezembro de 2018.

Em 1975, a então primeira-ministra Indira Gandhi declarou estado de emergência na Índia, limitando os poderes da imprensa e silenciando inimigos políticos. Na mesma época, um grupo de estudantes universitários do Instituto de Cinema e Televisão da Índia (FTII), na cidade de Pune, se juntou para fazer um filme em resposta à crise política. Esse grupo de jovens, entre eles os futuros cineastas K. Hariharan, Kamal Swaroop e Saeed Akhtar Mirza e os cinegrafistas Binod Pradhan, Manmohan Singh e Rajesh Joshi, enxergava o cinema comercial como uma via de escape para as mazelas sofridas pela população, consequentemente era alienante. Eles então vislumbraram um cinema que pudesse tratar dos problemas sociais e políticos de forma educativa e inspiradora. Para isso, o trabalho precisaria começar pelo próprio meio de produção dos filmes, surgindo assim a Cooperativa Cinematográfica Yukt – que, em hindi, significa “unido” ou “fundido”.

O nome da cooperativa foi proposto por Mani Kaul, um renomado cineasta e pioneiro no movimento do Cinema Paralelo indiano por filmes poéticos como Uski roti (Pão cotidiano, 1969) e Duvidha (Indecisão, 1973). Em uma visita à universidade, Kaul se entusiasmou profundamente com a iniciativa dos estudantes e se juntou a eles. Ainda que tivesse praticamente a mesma idade dos demais, era o único que já havia realizado longas-metragens e, por isso, era tratado como um veterano, a quem o grupo ouvia com atenção e respeito. 

Como o sistema indiano de cooperativas era bem desenvolvido e, em algumas regiões, até fomentador da produção cinematográfica local, o grupo conseguiu apoio em Maharashtra (estado onde o FTII era localizado) para a criação de sua própria cooperativa de cinema. Com isso, eles conseguiram um empréstimo bancário que foi utilizado para realizar o primeiro e único filme assinado pela Yukt, o épico histórico Ghashiram Kotwal (1976). 

O filme se baseia na peça experimental homônima, escrita e adaptada para o cinema pelo dramaturgo Vijay Tendulkar. Em um período de instabilidade do Império Marata, no final do século XVIII, com a crescente ocupação britânica e a insatisfação da classe política, o primeiro-ministro Nana Phadnavis promove o brâmane Ghashiram ao posto de Kotwal – chefe da polícia imperial – com o intuito de vigiar e punir aqueles que se opunham a seu governo. Ghashiram segue impiedosamente as ordens de Nana e promove uma onda de prisões, torturas e assassinatos entre a população local, que padecia com a situação degradante do trabalho. 

 

Cena de Ghashiram Kotwal, de Cooperativa Cinematográfica Yukt
Cena de Ghashiram Kotwal, de Cooperativa Cinematográfica Yukt

 

A narrativa do filme, falada e cantada por atores que frequentemente dirigem seus comentários ao público, rompe com a dramatização histórica, se torna autorreferencial e cria um espelhamento entre as circunstâncias do passado e as do presente, lembrando o método didático de Bertolt Brecht. O filme inicia com a peça Ghashiram Kotwal sendo apresentada em um teatro rural, enquanto ouvimos o narrador explicar que os espectadores da peça são simples camponeses massacrados pelo trabalho braçal e por salários desumanos. Somos então transportados do teatro para o ambiente de trabalho deles. Enquanto assistimos aos trabalhadores no campo, ouvimos o narrador dizer: “Algo engraçado e prazeroso é garantia de uma mentira. Mas este filme será diferente.” 

O narrador retorna em outros momentos do filme, e, na cena final, um belo plano-sequência de dez minutos, somos novamente transportados no tempo enquanto ele descreve a derrocada de Nana e o fim do Império Marata, culminando na ocupação britânica da região e na imposição das novas regras de demarcação de terras. A câmera passeia em meio a uma paisagem montanhosa, onde o espaço é medido por agrimensores ingleses. O forte som do vento parece impulsionar o passar do tempo. Arrancados da história épica e de nosso próprio momento, observamos a dança do poder como um processo circular. 

Esse movimento do jogo de poder mimetizado pelo deslocamento da câmera havia sido explorado pelo cineasta húngaro Miklós Jancsó, outra importante referência para os integrantes da Yukt – que tiveram acesso ao cinema do leste europeu graças ao FTII. Em 1976, Jancsó já era consolidado internacionalmente e amadurecia um estilo muito particular que influenciaria gerações de cineastas dentro e fora da Hungria. Principalmente a partir de uma trilogia de dramas históricos chamados Os sem esperança (Szegénylegények, 1966), Vermelhos e brancos (Csillagosok, katonák, 1967) e Silêncio e grito (Csend és kiáltás, 1968), que abordavam por meio de encenações teatrais e longos planos fluidos em pradarias e florestas a violência do estado sobre a população majoritariamente rural no declínio da monarquia húngara. 

Jancsó nasceu em 1921 de pai húngaro e mãe romena. Antes de fazer seu primeiro longa-metragem, em 1958, se formou em direito e estudou etnografia, serviu como soldado e foi preso durante a Segunda Guerra Mundial, e filmou cinejornais durante o período inicial do governo comunista e da ocupação soviética na Hungria. Essas experiências o ensinaram a enxergar os mecanismos de controle social com ceticismo, algo refletido ao longo de seus filmes, que retratam as mudanças de poder como ciclos repetitivos de opressão, mas que também valorizam os esforços de pessoas comuns em busca de liberdade. 

Essa luta é o foco de um de seus filmes mais reverberantes, o musical Salmo vermelho (Még kér a nép, 1972), que K. Hariharan recentemente caracterizou como “um filme que nós vimos dezenas de vezes em 1976 para nos preparar de corpo e alma”. Nele, o conflito entre camponeses e o Estado é encenado integralmente em um campo aberto na Grande Planície Húngara. A história se passa no final do século XIX, quando eclodiu uma série de revoltas camponesas após a fundação do Partido Democrático Social. Ela se desenvolve como uma dança entre os atores e a câmera ambulante, ao som de canções de cunho socialista, como a seguinte, que se repete em três momentos diferentes: 

Nós somos trabalhadores, não temos liberdade 

Porque em vez de sorte, somos golpeados pela desgraça 

Não importa! Não importa! 

Vida longa aos trabalhadores! 

O estilo dinâmico do filme e a montagem de apenas 26 planos cria um espaço contínuo, no qual forças humanas colidem. Personagens com funções específicas aparecem pontualmente, como o jovem barão que, apesar de simpatizar com a luta camponesa, não é capaz de compreendê-la. Dentre os camponeses, diferentes visões sugerem a existência de diversas vertentes do socialismo, quando uns, com um discurso mais inflamado, defendem a revolução, enquanto outros defendem uma mudança gradual sem violência. Conforme os conflitos emergem pela união dos camponeses e são dissipados pelas armas de fogo dos soldados, a tensão e a violência aumentam, culminando em um gesto unânime representado por uma camponesa empunhando um revólver. 

 

Cena de Salmo Vermelho, de Miklós Jancsó
Cena de Salmo Vermelho, de Miklós Jancsó

 

A cor vermelha também passeia com a câmera e os personagens, se materializando no sangue, e do sangue, em bandeiras e fitas que adornam chapéus, crucifixos e armas. Embora Salmo vermelho retrate os camponeses como figuras dignas e fortes, o filme conta com várias imagens perturbadoras e ambíguas sobre o destino possível da revolução. São imagens que também servem como prenúncio do futuro do cinema de Jancsó, que deixou a abordagem materialista para ganhar dimensões mais simbólicas e difusas nas produções que se estenderam até pouco antes de sua morte, em 2014. 

Foram décadas em que os integrantes da Yukt também desenvolveram seus próprios projetos como cineastas independentes. Saeed Akhtar Mirza se tornou um notável satirista e observador social, começando com o longa O estranho destino de Arvind Desai (Arvind Desai Ki Ajeeb Dastaan, 1978), produzido pela cooperativa. Mani Kaul transitou entre ficção e documentário, buscando desafiar linguagens cinematográficas convencionais até sua morte, em 2011, assim como o ainda ativo Kamal Swaroop, que realizou diversos documentários após seu celebrado longa de estreia Om-Dar-B-Dar (1988). E o mais jovem entre os diretores do grupo, K. Hariharan, continua seu trabalho como cineasta, professor universitário e principal organizador da memória da Yukt.