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Revisões 2018

04 de dezembro de 2018

A mostra Revisões 2018 está em cartaz no cinema do IMS Paulista de 5 a 29 de dezembro.

 

Rever, restaurar, reapropriar, resgatar, refazer. No dicionário, o prefixo “re” tem o sentido de ação repetitiva ou retroativa. Como olhar 2018?

Com o lançamento do teaser especial de divulgação da refilmagem de O Rei Leão, a Disney “quebrou a internet” no fim de novembro, anunciando procura gigantesca pelas imagens de um novo produto com lançamento em 2019. O termo “refilmagem” é curioso, pois O Rei Leão de 1993 é um desenho animado e o filme novo é aparentemente uma reconstrução digital fotorrealista da animação.

O teaser de O Rei Leão sugere (e vem sendo comentado como tal) que houve algum tipo de decalque das imagens do filme original, plano a plano. Seria a garantia comprovada da qualidade Disney para um produto novo que não irá desviar-se do filme original, uma garantia de satisfação absoluta da clientela? O cinema passa por novas mutações técnicas.

Também no mês passado, Bohemian Rhapsody, de Bryan Singer, tomou liberdades narrativas que já poderiam ser esperadas em “biopics” (os “biofilmes”), mostrando a trajetória da banda Queen e do seu frontman, Freddie Mercury. No entanto, chamamos a atenção para um investimento do filme na sua sequência final que é a recriação (muito curiosa, ao nosso ver) de um evento histórico registrado por câmeras de TV, e disponível no YouTube: a participação de 21 minutos do Queen no Live Aid, no estádio de Wembley, em julho de 1985.

Curioso que essa reconstrução “do real” use tecnologia normalmente percebida em filmes de ação, fantasia e super-heróis. A câmera vem num voo rasante impossível por cima de 80 mil espectadores digitais. No lado humano da coisa, os atores interpretam os personagens reais nos mínimos trejeitos. Talvez daqui a alguns anos, as pessoas adotem a sequência dirigida por Singer como o registro oficializado e preferido do Queen em Wembley 1985, e não mais o documento histórico da BBC TV feito ao vivo.

A cada produção, uma forma de elaborar o tempo. E se, no extracampo, vigora o projeto de fazer do Brasil semelhante ao que era “40, 50 anos atrás”, o olhar para o passado parece ter mesmo se tornado um exercício constante e inevitável. Olhar com urgência. Olhar com cuidado.


Nos parece que o gesto chave do cinema neste ano foi olhar para trás – seja na estreia de filmes que tratam do nosso passado, que se apropriam de referências visuais longínquas em novas fábulas ou ainda que recriam nossas memórias afetivas. Nada exatamente novo, inclusive porque esse é há muitos anos (ou desde sempre?) o movimento do cinema, com suas adaptações literárias, suas refilmagens de peças de teatro ou inúmeras versões de um mesmo filme separada por gerações. É nesse sentido que reforçamos a proposta de partir de alguns lançamentos comerciais mais ou menos recentes para programar outros filmes, outros tempos.

Cena de Halloween: a noite do terror, de John Carpenter

Halloween: a noite do terror (1978), de John Carpenter, é o primeiro filme da franquia que em 2018 lançou seu décimo primeiro título. O novo longa distribui piscadelas aos fãs fazendo referências a diversos momentos da série. Michael Myers, o psicopata mascarado, está de volta, assim como o tema da trilha sonora original, composta e realizada pelo próprio John Carpenter. Jamie Lee Curtis é novamente Laurie Strode, a personagem que interpretou pela primeira vez em 1978. Uma colegial que trabalhava como babá, no filme acalmava as crianças aflitas na noite de Halloween. Na nova versão do filme, Laurie é uma avó pronta para guerra, e tem certeza: o Boogeyman (algo como o bicho-papão) é real.

Na presença do monstro, não parece à toa que o cinema brasileiro tenha produzido uma safra de filmes que abraçam e reelaboram o gênero, com forte inflexão para o horror, o slasher… Apropriando-se de referências visuais longínquas em novas fábulas, As boas maneiras, que esteve em exibição no Cinema do IMS por alguns meses após sua estreia, retorna agora para uma sessão comentada ao vivo pelos diretores Juliana Rojas e Marco Dutra.

Cena de As boas maneiras

Restaurados esse ano e exibido no festival italiano Il Cinema Ritrovato antes de chegar às mostras brasileiras, estão Central do Brasil (1998), de Walter Salles, e Pixote, de Hector Babenco. Se Central, que completa 20 anos desde seu lançamento, buscava algum Brasil possível após o horror político e econômico dos anos de ditadura e pós, o filme de Babenco projeta uma tragédia ficcional que continuou (e continua) se perpetuando muitos anos depois na realidade do país. A carreira artística do seu protagonista, interpretado por Fernando Ramos da Silva, não vingou e, parafraseando Eric Nepomuceno, “na falta de outro contrato, desempenhou o único papel que lhe restava: o de Pixote”. Fernando morreu com quatro tiros no peito em confronto com a polícia, aos 19 anos, em 1987.

Ainda nos anos 1980, mas em outro ponto do espectro do descaso social, se situa o filme Como sobreviver a uma praga, de David France, um prelúdio a 120 batimentos por minuto, de Robin Campillo, que estreou no Brasil este ano. Ambos os filmes remontam às origens do grupo ativista Act Up, na luta contra a AIDS, em seus braços americano e francês. No drama dos primeiros anos de pandemia, o pessoal é político e também se articula enquanto coletivo. É nesse trânsito que reside a força de 120 batimentos, ao resgatar discussões, tensões, movimentos de aproximação e discordância.

Cena de 120 batimentos por minuto

Há ainda este mês nas duas salas do IMS os casos de imagens do Real que observamos em Infiltrado na Klan (BlacKkKlansman), do Spike Lee, e em O processo (The Trial/Den Pobedy), de Sergei Loznitsa. O filme de Lee é o gênero policial americano de linguagem popular com uma carga política forte, feito no país que tem hoje Donald Trump na Casa Branca. A energia combativa do momento presente é muito clara no filme.

Lee aborda o racismo endêmico dos EUA via trama adaptada de fatos, ocorrida nos anos 1970, quando um policial negro infiltrou-se na organização de extrema-direita Klu Klux Klan (via contatos telefônicos), e através de um colega judeu que o representa presencialmente.

Apesar do período em que se situa, o filme se utiliza de imagens de arquivo para operar tanto uma revisão da história do cinema americano quanto um comentário afiado sobre o momento presente. Cenas de O nascimento de uma nação (1915), de D.W. Griffith, questionam a representação enobrecida da Klan realizada por esse que é por muitos considerado um dos mais importantes nomes da história do cinema. O filme já havia sido citado em outras obras de Spike Lee, como The Answer, seu segundo curta-metragem, realizado na faculdade, e Bamboozled, que enfoca a representação racista das pessoas negras nessa e em outras produções audiovisuais.

Por outra via, há uma construção rumo a um outro final de forte catarse na utilização passional de material registrado em telefones e na mídia digital contemporânea referente ao atentado em Charlottesville, em julho de 2017, que deixou uma pessoa morta e os EUA dividido. Divisão essa reforçada no papel do presidente Trump, que não foi capaz de repudiar o incidente como fruto da intolerância da extrema direita.

Munido de autorização da família da vítima, Lee utilizou as imagens, que editadas e sonorizadas para a tela do cinema, e inseridas ao final de uma narrativa clássica envolvente, é ainda alavancada por uma contextualização poderosa nas duas horas que antecederam a montagem.

Outro dos filmes citados em Infiltrado na Klan de fato entra em nossa programação: Shaft (1971), longa que deu início ao gênero Blaxploitation e teve diversos remakes desde então, um deles, inclusive, previsto para 2019.


Cena de O Processo, de Sergei Loznitsa

Já na equação histórica e política de O processo, de Sergei Loznitsa, que exibimos em sessões especiais no IMS esse mês, a ideia de contextualização é algo que precisamente parece não estar presente. É fácil compreender a mera coincidência de o filme dividir o mesmo título – e mesmo ano de lançamento – com o relato apresentado por Maria Augusta Ramos sobre o labirinto político e judicial imposto à Presidente Dilma por uma oposição que queria tomar e tomou mesmo o poder.

Os dois filmes , que poderão ser assistidos lado a lado, trazem cargas políticas que são fruto de articulações feitas à mão em cenários históricos específicos, situações geradas artificialmente e registradas como Imagens do Real. A referência a Franz Kafka, feita pelos dois, são concordância sobre como os processos de lei podem ser articulados como narrativas roteirizadas pelas exigências do Poder.

No caso do realizador ucraniano, temos um cronista e historiador cético da tragédia que para ele foi a União Soviética. Seu filme apresenta um bloco maciço de duas horas montadas a partir dos arquivos inacreditavelmente bem filmados e gravados sonoramente em 1932, em Moscou, dos “julgamentos espetáculo de Stálin”, como bem ficaram conhecidos esses eventos públicos e midiáticos.

Para o espectador, a orientação ideológica poderá abrir espaço para interpretações específicas, mas não fica dúvida alguma do posicionamento de Loznitsa ao apresentar não apenas esse arremedo de processo teatral diante das câmeras, mas especialmente nos interlúdios nas ruas, onde a revolta popular parece também ensaiada para manter as coisas exatamente como Josef Stálin queria que ficassem. Em alguns dos momentos mais fortes como imagem fílmica, membros da multidão tentam proteger seus rostos e seus olhos das poderosas luzes do cinema, que registram ali o teatro da política.


Num ano de perdas sentidas, homenageamos os diretores Roberto Farias e Nelson Pereira dos Santos, falecidos no primeiro semestre, em um intervalo de menos de um mês. Os filmes de Nelson ocupam a sala de novembro de 2018 até o fim de 2019, em uma revista completa por uma filmografia que cavou profundas mudanças no repertório de imagens do cinema brasileiro. Com Roberto, encenamos o tradicional especial de fim de ano do rei (qual?) à nossa própria maneira.

Em Roberto Carlos e o diamante cor-de-rosa, alguns versos soam bastante presentes:

as coisas estão passando mais depressa

o ponteiro marca 120

o tempo diminui

as árvores passam como vultos

a vida passa, o tempo passa

estou a 130

as imagens se confundem

* Equipe Cinema IMS: Kleber Mendonça Filho (coordenador), Barbara Rangel, Thiago Gallego e Ligia Gabarra