Num momento em que se discute acaloradamente a judicialização da política e a politização da justiça, não pode haver filme mais oportuno que o clássico Seção especial de justiça, do greco-francês Constantin Costa-Gavras, que entrou em 11 de março na plataforma de streaming Belas Artes à la carte.
Realizado em 1975 e ganhador do prêmio de direção em Cannes, o filme só foi liberado no Brasil seis anos depois pela censura da ditadura militar, embora se refira a eventos ocorridos na França em 1941, durante a ocupação do país pelos alemães. O que havia de tão incômodo naquela história para os fardados no poder? Decerto era a denúncia das injunções político-militares sobre o ordenamento jurídico – assunto quente em qualquer época e local que não esteja sob o pleno estado de direito.
A partir do romance L'affaire de la Section Spéciale, de Hervé Villeré, que por sua vez se inspirou em fatos reais, o roteiro de Jorge Semprún conta a história da represália ao assassinato de um soldado alemão no metrô de Paris durante a Ocupação. Havia uma norma tácita segundo a qual, para cada alemão assassinado na França ocupada, seis franceses deveriam ser executados.
Querendo mostrar serviço para os ocupantes nazistas, o governo colaboracionista de Vichy, comandado por um mumificado marechal Pétain (de quem só a voz se ouve no filme), monta um julgamento farsesco para condenar seis homens à guilhotina. Cria-se então um tribunal de exceção (a tal “séction spéciale” do título original), edita-se às pressas uma lei que permite condenar retroativamente à morte prisioneiros já julgados e prepara-se uma execução coletiva pública na place de la Concorde.
Mecanismo de corrosão
O grande articulador desse mecanismo todo é o novo ministro do Interior, Pierre Pucheu (Michel Lonsdale), que atropela ou coopta outros ministros, inclusive o da Justiça, para levar a farsa até o fim. Chega-se à conclusão de que o melhor é escolher como vítimas quatro comunistas e dois judeus – e a certa altura um dos encarregados de pesquisar os “candidatos” entre os presos exulta ao abrir uma pasta: “Este aqui é judeu e comunista”. Ou seja, ideal para a guilhotina.
Especialista em thrillers políticos ambientados em várias partes do mundo (Z na sua Grécia natal, A confissão na Tchecoslováquia, Estado de sítio no Uruguai, Missing no Chile, etc.), Costa-Gavras narra com eficiência o rápido passo a passo desse processo de corrosão da justiça e da moral sob a capa das instituições. Tudo tem que funcionar dentro dos preceitos da lei, e para isso estes vão sendo deformados um a um.
As maiores abominações são concebidas e engendradas em salões elegantes, por magistrados togados, políticos empertigados, militares repletos de medalhas, pais de família que ajudam os filhinhos com o dever de casa. Para convencer os mais recalcitrantes, apela-se para o patriotismo, a defesa da nação, as “razões de estado”. Ironicamente, são os representantes das forças alemãs de ocupação que se manifestam mais surpresos com a escalada de ilegalidades. Um deles chega a lembrar a separação dos poderes traçada por Montesquieu dois séculos antes.
O que permanece vivo no filme, a meu ver, é a cadeia de compromissos, capitulações e acomodações capaz de transformar aos poucos as instituições em simulacros, o processo legal em farsa teatral, a própria justiça em piada cruel.
Não por acaso, a primeira cena se dá num teatro majestoso, onde se encena uma ópera. Essa sequência inicial, aliás, talvez seja a melhor de todas, do ponto de vista da construção audiovisual: vemos antes de tudo cada instrumentista entrar em ação, com seu instrumento e seu som, formando aos poucos a massa sonora e a coreografia ritmada da orquestra. Só depois a imagem se abre e vemos o palco, a plateia, os camarotes – e neles a intriga que se arma. Essa ideia de trama coletiva, de cada um fazendo sua parte para o efeito geral, que nesse início é tão bela e harmônica, será glosada, retratada em negativo, ao longo da narrativa.
A cada momento os personagens são instados a fazer parte de uma engrenagem maléfica. Uns poucos relutam, mas acabam se encaixando, ainda que a contragosto. São raros os que de fato resistem, como parafusos soltos, instrumentos desafinados, fios desencapados. Neles sobrevive a humanidade toda.
Em tempo: o filme foi exibido nos cinemas como Sessão especial de justiça, mas o certo mesmo é seção (no sentido de divisão, segmento), que corresponde ao francês section.
América armada
A não aceitação de uma realidade opressiva e injusta é o que aproxima os três personagens que conduzem o documentário América armada, de Pedro Asbeg e Alice Lanari, programado para estrear também em 11 de março nas plataformas Now, Vivo Play e Oi Play.
Realizado em 2018 e exibido com boa repercussão num punhado de festivais internacionais, o filme retrata as situações de extrema violência vividas nas favelas do Rio, na área rural mexicana e nas ruas das grandes cidades da Colômbia.
No Complexo do Alemão, quem conduz a narrativa é o jovem jornalista e militante digital Raull Santiago; em Medellín, a ativista Teresita Gaviria, que organiza e lidera mulheres cujos filhos foram mortos ou estão desaparecidos; no México, o fotógrafo e jornalista Heriberto Paredes, que documenta a auto-organização armada dos habitantes de vilarejos rurais, cansados da brutalidade do tráfico e do exército.
O documentário tem momentos de grande impacto, como aquele em que, no meio da favela, Raull Santiago identifica e interpela um policial à paisana, de camiseta e bermuda, que estava filmando moradores numa manifestação. Sente-se ali a alta temperatura de um confronto que pode terminar em tiros e morticínio.
Mas é o mexicano Paredes que traça o quadro mais amplo, identificando o atual momento de países como México, Colômbia e Brasil como de “capitalismo criminal”, em que “a violência virou um grande negócio”. Difícil discordar.