A partir de 25 de setembro, o cinema do IMS apresenta no IMS Paulista e no IMS Rio uma mostra que debaterá o impacto da obra de Paulo Emílio Salles Gomes no exterior.
Mais conhecido fora do Brasil por seu trabalho sobre o cinema francês, principalmente o estudo definitivo de Jean Vigo, de 1957, Paulo Emílio Salles Gomes é reverenciado no Brasil como um dos fundadores da crítica cinematográfica e dos estudos de cinema. Tendo escrito cerca de 400 ensaios ao longo de sua vida; ele ministrou aulas em importantes escolas de cinema; foi figura-chave no desenvolvimento dos arquivos de filmes, tanto na Europa como no Brasil; e é considerado o primeiro defensor ardente e promotor do cinema brasileiro.
Em um artigo muito discutido, intitulado “The Decay of Cinema” [A decadência do cinema, em tradução livre, 1996], Susan Sontag escreve que, embora tenha se tornado um lugar-comum lamentar o desaparecimento de alguma chama na vida do cinema, não foi a produção cinematográfica em si que foi afetada, mas sim o tipo de amor intenso e pessoal pelo cinema que atende pelo nome de cinefilia. A partir do pós-guerra (final dos anos 1940 e 1950), na Europa, e em seguida nos EUA e em outros lugares nas décadas de 1960 e 1970, houve um movimento de críticos que discutiam e encaravam o cinema como a forma de arte mais urgente e importante, que interagia de maneira extraordinariamente diversa com a cultura e as configurações históricas. Essa cinefilia gerou uma cultura cinematográfica abrangente, surgiram cineclubes, revistas, retrospectivas e instituições, que se voltavam não apenas para essa forma de arte, mas também para a política, a ideologia e a sociedade como um todo. Esse amor intenso pelo cinema e a apreciação de suas provocações mais amplas guiaram o envolvimento de Paulo Emílio com o cinema ao longo de sua vida.
Nascido em São Paulo em 1916, Paulo Emílio se envolveu ativamente no meio cultural da cidade desde cedo. A metrópole abrigava experiências literárias e culturais – notavelmente o movimento modernista, que nas décadas de 1920 e 1930 questionou as atitudes literárias tradicionais e os valores artísticos, e também participou de um amplo espírito de modernização, explorando diversos aspectos da sensibilidade nacional e das relações sociais do país. Paulo Emílio estava intimamente envolvido com esse espírito de renovação e investigação. Em 1933, mal completado o ensino médio, tornou-se editor da revista cultural Movimento, que tinha entre seus colaboradores Mário de Andrade e Anita Malfatti. Também fundou, com Oswald de Andrade, o clube literário Quarteirão. Juntos, Paulo Emílio e Oswald organizaram inúmeros eventos, de exposições a debates, que abordavam a cultura, a sociedade e a política no Brasil.
Referindo-se a Oswald como seu "primeiro tutor", Paulo Emílio compartilhou os interesses literários e os compromissos políticos do escritor modernista. Na vanguarda do movimento juvenil de São Paulo contra o fascismo e o imperialismo, Paulo Emílio ingressou em 1933 na Aliança Nacional Libertadora (ANL). O anti-imperialismo de Paulo Emílio ganhou, então, uma perspectiva nacional específica, focada na situação colonialista e subdesenvolvida do Brasil, que mais tarde se tornaria um eixo fundamental em seu trabalho sobre o cinema brasileiro. A militância política levou Paulo Emílio à prisão em 1935, aos 19 anos. 14 meses depois, ele e 16 outros prisioneiros escaparam por um túnel que haviam cavado. Paulo Emílio rapidamente deixou o Brasil e foi para Paris, onde passou dois anos no exílio.
Foi na capital francesa que começou seu amor pelo cinema. Antes de morar na França, ele tivera pouco interesse em filmes, mas sua presença em Paris na década de 1930 imediatamente mudou isso. A cidade experimentava um crescimento notável de espaços dedicados à divulgação de filmes e a novas ideias sobre o cinema. Revistas, clubes de cinema e instituições forjaram uma nova paisagem, disseminaram novas teorias sobre filmes e promoveram discussões relevantes sobre a sétima arte. Paulo Emílio visitou cinemas parisienses e a Cinemateca Francesa, e a cidade deu-lhe acesso sem precedentes a obras estrangeiras, incentivando-o a considerar filmes como obras de arte.
Paulo Emílio voltou ao Brasil em 1940 para estudar filosofia na Universidade de São Paulo. No mesmo ano, criou o Cinema Club, uma iniciativa que surgiu no mesmo momento em que ele participou da criação da revista Clima junto com o grupo de jovens amigos que teriam um enorme impacto na história da crítica cultural no Brasil: Antonio Candido, Décio de Almeida Prado, Gilda de Mello e Souza, Ruy Coelho e Lourival Gomes Machado. Foi com a revista que o grupo mergulhou pela primeira vez no campo da história cultural e investigou o processo formativo, englobando diversos setores da cultura brasileira, em um esforço para corroborar, por meio de ensaios e pesquisas, um espírito de renovação herdado do Modernismo. Na Clima, Paulo Emílio começou a escrever sobre cinema, redigindo ensaios sobre filmes estrangeiros. Prestando atenção especial à cinematografia, como ângulos de câmera, mise-en-scène e montagem, os ensaios ensinaram uma nova geração sobre a arte do filme. Esse empenho continuou em vários jornais: Paulo Emílio escreveu sobre cinema no Jornal do Brasil, no Brasil Urgente, no Jornal da Tarde e no Suplemento Literário de O Estado de S. Paulo. Seus ensaios, considerados na época leitura obrigatória, criaram um novo espectador, que trocou o entretenimento pela apreciação e pela compreensão crítica do cinema.
Esse espírito foi expresso quando Paulo Emílio liderou a abertura da Cinemateca Brasileira, em 1954. Ele tinha adquirido considerável experiência e importantes conexões internacionais graças a seu trabalho com a Federação Internacional de Arquivos de Cinema (Fiaf), que havia sido criada em Paris em 1938. Foi membro regular do Comitê Executivo da Fiaf entre 1948 e 1964, atuando como um dos vice-presidentes em numerosas ocasiões. A formidável rede de arquivistas, cineastas e críticos que ele teceu na Europa foi muito importante para construir a Cinemateca Brasileira. Paulo Emílio sabia que adquirir, colecionar, preservar, restaurar e mostrar filmes era essencial para elevar os estudos de cinema a um novo patamar. Expandindo seus próprios esforços para organizar esse campo de pesquisa de forma sistemática, ele deu vida à tarefa em círculos acadêmicos, inicialmente na Universidade de Brasília, entre 1964 e 1965, e posteriormente na Universidade de São Paulo (a partir de 1968), onde ajudou a forjar uma nova geração de influentes críticos de cinema e estudiosos, que incluíram Jean-Claude Bernardet, Carlos Augusto Calil, Carlos Roberto de Sousa, Maria Rita Galvão e Ismail Xavier. Novos cursos universitários eram centrados em debates-chave dos estudos cinematográficos; também se aprofundavam na própria história do cinema brasileiro, que se tornou um objeto de pesquisa legítimo e um enfoque específico na academia e no mundo cultural.
Paulo Emílio organizou inúmeras retrospectivas e projeções de filmes e iniciou um ambicioso projeto de preservação de filmes e documentos cinematográficos produzidos no Brasil. Ele também escreveu e publicou estudos em torno desse tema, propondo novas metodologias e técnicas de pesquisa. Parte desse enfoque se deu na produção doméstica mais comercial, garantindo que o Brasil estivesse na vanguarda dos estudos cinematográficos quando se trata da inclusão do popular na formação do cânone de cinema. Esse foco no cinema popular faz parte do interesse de Paulo Emílio pelo "não consagrado". Em vez de seguir a maioria, ele preferia falar de filmes e diretores menos conhecidos. Foi uma das primeiras pessoas que se interessou de forma sistemática pelo filme brasileiro silencioso. Uma extensão desse interesse foi o livro Humberto Mauro, Cataguases, Cinearte, que colocou o diretor mineiro como um dos maiores do país.
O trabalho de Paulo Emílio deu origem, assim, a uma consciência cinematográfica nacional que se concentrava cada vez mais nos efeitos ideológicos da condição subdesenvolvida do país. Discussões políticas sobre a forma do cinema e seu lugar no Brasil vieram à tona em seus escritos nos anos 1960 e mostraram uma nova cinefilia, em que o formalismo se fundiu com a ideologia. Esse processo fez parte do surgimento, nesse período, do Cinema Novo, quando um grupo de cineastas brasileiros, como os modernistas literários das décadas de 1920 e 1930, procurava criar uma nova estética, que rompesse com formas tradicionais e convencionais de cinema. Essa ruptura ia ao encontro da crítica política e social e da ideia de que o cinema poderia contribuir para forjar um Brasil melhor. O diretor Carlos Diegues, por exemplo, viu Paulo Emílio desenterrando a história do cinema nacional como algo que fez sua geração ciente de sua própria tradição cinematográfica, que não havia sido documentada por causa da ignorância e do preconceito.
Os ensaios e empenhos de Paulo Emílio tiveram repercussão para além dos anos 1960 e do clima político daqueles anos. Seu trabalho tem recebido muita atenção desde sua morte prematura, em 1977. Em 1982, a editora Paz e Terra lançou dois volumes de artigos sobre cinema, que foram escritos para sua coluna no Suplemento Literário de O Estado de S. Paulo. Quatro anos depois, Carlos Augusto Calil e Maria Tereza Machado editaram uma coletânea de ensaios sobre cinema, literatura e política intitulada Paulo Emílio: um intelectual na linha da frente. Calil também dirigiu recentemente um projeto para a editora Cosac Naify, com apoio do arquivo cinematográfico da Cinemateca Brasileira, para editar materiais inéditos e reeditar alguns dos trabalhos de Paulo Emílio publicados no Brasil e no exterior. Em 2012, o 45º Festival de Brasília homenageou Paulo Emílio, organizando um seminário em que críticos, cineastas, professores e estudantes se reuniram para debater seu legado. Como parte do evento, também foi publicado um livro, intitulado O homem que amava o cinema e nós que o amávamos tanto, uma coletânea de artigos e depoimentos confirmando sua centralidade na cultura cinematográfica brasileira. O centenário de seu nascimento, em 2016, foi marcado por uma série de eventos, incluindo um simpósio como parte do festival de documentários É Tudo Verdade, em São Paulo, e as publicações O cinema no século e Uma situação colonial?, também organizadas por Calil e editadas pela Companhia das Letras, além do livro Paulo Emílio Sales Gomes ou la critique à contre-courant (Paulo Emílio Sales Gomes ou a crítica na contra mão, em tradução livre) ,coletânea editada na França por Adílson Mendes e Isabelle Marinone. E, no ano passado, foi publicado Paulo Emílio Salles Gomes. On Brazil and Global Cinema (Paulo Emílio Sales Gomes. Sobre o cinema brasileiro e global, em tradução livre) , uma coletânea organizada por nós de seus ensaios traduzidos para o inglês, introduzindo a entusiastas anglófonos do cinema o amplo trabalho de Paulo Emílio. Essas iniciativas ressaltam a importante influência e o grande alcance das contribuições de Paulo Emílio à imprensa, seu trabalho para a Cinemateca Brasileira e suas atividades como pesquisador e professor. O legado duradouro de Paulo Emílio no Brasil significa que sua cinefilia, ou seja, seu amor pelo cinema, vive em seus ensaios, resenhas e escritos. Se o cinema-amor, como afirma Sontag, se perdeu na nova era tecnológica de hoje, um compromisso com os escritos de Paulo Emílio pode nos ajudar a recuperá-lo e a experimentá-lo novamente.