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Uma continuação platônica

06 de fevereiro de 2018

 

Em fevereiro, A forma da água e O monstro da lagoa negra estão em cartaz nos cinemas do IMS Paulista e do IMS Rio.

 

Há 25 anos Guillermo del Toro filma almas e criaturas, geralmente em contraste com monstros humanos de aparência "normal". Há uma delicadeza no seu registro fantastique, um pouco como um museu de cera cuidado por um proprietário bondoso, atraído pelo que um senso comum chamaria de feiura (Hellboy e O labirinto do fauno, exemplos memoráveis). Seu filme mais recente, A forma da água (The Shape of Water, 2017), sintetiza esse jeito de ver recorrente no cinema moderno e no olhar de Del Toro: a referência amada a filmes do passado, aqui especialmente O monstro da lagoa negra (Creature From the Black Lagoon, 1954), de Jack Arnold, rodado em 3D na primeira e curta mania do formato, mais de 60 anos atrás.

O monstro da Lagoa Negra e também A forma da água trazem um certo estado de mundo e dos Estados Unidos nos anos 1950, com detalhes que não parecem ter envelhecido: a ameaça nuclear da Guerra Fria, o medo do "outro", do "estrangeiro".

No filme de Arnold, a ambientação clássica de uma misteriosa lagoa negra na exótica e distante Amazônia brasileira, aqui visitada por americanos mais desenvolvidos tecnologicamente. O filme é memorável pelo excelente artesanato de Cinema B, que só parece ganhar com a passagem do tempo, e dá continuidade a uma tradição de monstros e criaturas do estúdio Universal (Drácula, Frankenstein, a Múmia, o Lobisomem).

Teremos a oportunidade de projetar O monstro da lagoa negra na sua imagem nativa 3D nas nossas duas salas do IMS, em cópia DCP especialmente trazida do exterior. De fato, o filme também é notável pelo uso do 3D num momento histórico que via o cinema (ou a ida à sala de cinema) ameaçada pela chegada da televisão. Como o Cinerama e o CinemaScope, o 3D foi vendido nos anos 1950 como uma atração específica da tela grande, uma tentativa de defesa contra a TV.

A onda do 3D nos anos 1950 acabou rápido, voltando pontualmente em alguns filmes de décadas seguintes. Na onda atual do 3D digital, já se vai quase uma década desde que Avatar (2009) ajudou a popularizar o formato no cinema contemporâneo pós-filme 35 mm. Atualmente, e já com sinais de exaustão, o 3D é usado para, sejamos sinceros, cobrar ingressos mais caros. A maior parte dos grandes lançamentos ganha o efeito 3D em pós-produção, e não ao filmar (é mais fácil, mais barato).

 

 

Revendo recentemente O monstro da lagoa negra (de fato rodado em 3D), percebe-se que Jack Arnold e equipe testavam os limites de uma nova imagem de cinema nos anos 1950 com uma elegância bem evidente, algo também percebido no sensacional Museu de cera (House of Wax, 1953), de André De Toth. O ritmo menos acelerado do que vemos hoje, cada imagem de fato pensada para o formato e o aspecto muito curioso (nesse filme em especial), como se estivéssemos num aquário preto e branco durante uma boa parte da projeção. Com bolhinhas e tudo.

Um aquário (militar) é também uma imagem que fica na continuação platônica do filme de Arnold, A forma da água, onde a criatura masculina dotada de guelras apaixona-se por uma faxineira muda interpretada por Sally Hawkins. É sempre curioso ver um cineasta autor não americano olhar para os EUA, em especial um mexicano filmando em Hollywood nestes tempos. Del Toro cobre o filme de guloseimas visuais verdes (Guillermo, verde?) e quitutes românticos de uma cinefilia sempre muito agradável (a heroína mora em cima de um cinema maravilhoso que exibe épicos italianos). O design retrô digital talvez sugira pelo menos uma referência visual de época a Mad Men, circa 1960, com a participação de um Cadillac numa concessionária.

E Del Toro, em cima dessa energia retrô, faz mais. Desenvolve uma relação curiosa de atração física entre dois seres, em que a heroína é sexualmente saudável e ativa, uma raridade absoluta na produção comercial atual made in Hollywood, em que sexo humano é apenas um ponto de partida, um plot device, para todo tipo de trauma, doença, humilhação e violência. Na verdade, trauma, doença, humilhação e violência estão no vilão da agência do governo, um Michael Shannon poderoso que parece traduzir o nojo de Del Toro por autoridades de direita com claro corte fascista. Curiosamente, A forma da água tem sido tratado pelo mercado como "filme de arte", vejam só!

E segue o cinema, "autoral" ou "comercial", sendo, ele mesmo, fruto e reflexo do mundo. E que beleza poder sentir a força desses dois filmes, unidos pelo “fantástico”, numa sala de cinema.