Em janeiro de 2019, como parte da retrospectiva integral da filmografia de Nelson Pereira dos Santos, os cinemas do IMS exibirão Vidas secas. No IMS Rio, o filme será exibido nos dias 12 e 31/01; no IMS Paulista, haverá sessões nos dias 19 e 30/01. A retrospectiva acontece ao longo de 2019 e foi iniciada em novembro de 2018. Vidas secas foi lançado em DVD pelo IMS e pode ser adquirido nas lojas dos nossos centros culturais e em nossa loja online.
José Carlos Avellar costumava dizer que Vidas secas, o filme de Nelson Pereira dos Santos, era ao mesmo tempo o ápice do realismo cinematográfico e o último dos filmes de linhagem “clássica”. A indicação confere à obra uma posição destacada na filmografia mundial, manifestada pelos prêmios conquistados na época de seu lançamento e apresentação no circuito de festivais, pelo impacto junto à comunidade cinematográfica (Luis Buñuel cita/homenageia conceitualmente o filme na abertura do famoso A bela da tarde, lançado em 1967, cuja personagem principal, não por acaso, se chama Séverine) e pela permanência no cânone nacional e internacional até a atualidade. Para muitos críticos, pesquisadores e historiadores, trata-se da magnum opus de Nelson e, sem dúvida, seu filme mais conhecido e celebrado.
O refinamento artístico exibido por Vidas secas revela a maturação do jovem artista quanto às armadilhas da adaptação, à descoberta do papel estético da tecnologia e da técnica, ao retrato humano ético, à verdadeira dimensão social e política do cinema e às lições do neorrealismo italiano. Começando pela última indicação, embora a referência ao pensamento e às práticas de Cesare Zavattini & cia. esteja mais associada aos primeiros filmes de Nelson, apresenta-se mais consciente, depurada e devidamente aclimatada a uma proposição local somente quando o projeto de levar Graciliano Ramos às telas decolou em 1962-1963. O realizador sempre rechaçou uma filiação direta ou uma apropriação mais pronunciadamente estética da filmografia neorrealista italiana. Admitia a importância muito mais do modelo de produção do que do receituário artístico e ideológico, ainda que tais elementos não pudessem ser de todo dissociados. Se inseria mais propriamente no que o roteirista Alinor Azevedo denominou “realismo cá de casa”, uma tentativa de ressaltar os materiais de trabalho locais não apenas como uma composição, mas como uma “maneira de ser”, incluindo olhar, andamento, interpretação, vocabulário, tipos, ambientes, imaginário e outras “particularidades”, metáforas para o ser brasileiro.
Nelson admirava Alinor, e conforme depoimento a Alex Viany, reproduzido no livro O processo do cinema novo, creditava a ele “um projeto muito parecido com o do cinema novo”, isto é, a literatura brasileira da geração de 1930, na qual se insere a obra de Graciliano, “a jogada da realidade brasileira” e o modelo de produção “independente”, calcado sobretudo no filme musical “honesto”, na prática uma chanchada menos fantasiosa e mais socialmente comprometida. Grosso modo, conjugava narrativa, temática e estética de forma menos colonizada, aproximando-as a uma dimensão de novo realismo ainda difusa. Com essas bases, vieram à tona Rio, 40 graus (1955) e Rio, Zona Norte (1958). No entanto, logo sobreveio a percepção do esgotamento da decupagem e do tratamento visual e dramático de fundo “clássico”, ou seja, em moldura hollywoodiana, exibidos no desvio de carreira chamado Mandacaru vermelho (1960). Parecia chegada a hora de substituir tal moldura, tida no fundo como falsamente realista, por ser artificiosa, escapista e esteticista, e mais respeitosa para com o drama humano e seus ambientes imediatos. A opção pelas premissas neorrealistas parecia impositiva: locações, atores não profissionais, abandono da música de fundo, do estúdio, da maquiagem e de quaisquer outros elementos que artificializassem a encenação das situações extraídas da realidade por uma ou outra forma/estratégia/estética.
O problema, entretanto, não teve resolução tão simples assim, o que traz à tona a especificidade da obra de Nelson, assim como sua permanência e complexidade. Em primeiro lugar, não se trata de contrapor o cinema hollywoodiano ao neorrealista, e sim de encontrar estruturas mais profundas e enraizadas como estratégia de compreensão de processos sócio-histórico-culturais. Nesse sentido, Rio, 40 graus tentou conjugar os elementos de base, mas os envolveu em uma inusitada e inovadora moldura coral, descentrando o protagonismo, ampliando e jogando com a montagem paralela, e fazendo do samba e seu ambiente a metáfora do nacional-popular, sem ser populista, viés associado à chanchada. Visto de uma atualidade cada vez mais preocupada com inovações estruturais como essa, o filme surpreende, até mais por sua consciência narrativa do que pelas características que o celebrizaram, ao colocar a personagem negra, periférica e pobre na linha de frente do cinema brasileiro. Aprofundando a construção dramática, mas com uma narrativa aparentemente mais convencional, calcada em flashbacks, de resto não tão comum assim por aqui, Rio, Zona Norte jogava o foco para o artista popular, o sambista, visto como síntese não só da real brasilidade como também de uma expressão cultural capaz de narrar a si mesma, sem mediações, em que pese sua absorção e exploração injustas pelas camadas dominantes da sociedade. Rechaçado por conta de um suposto psicologismo da narrativa, desenvolvia o retrato humano ainda a partir da moldura estética tradicional, de um realismo clássico em todos os sentidos e dimensões cinematográficas ocidentais dominantes, incluindo em parte as neorrealistas, com a possível grande exceção de Roberto Rossellini, que apontara em Paisà (1946) para um caminho efetivamente novo, em termos estruturais e estéticos, de que dá conta em parte Rio, 40 graus.
Para fazer revolução semelhante, Nelson ou reproduziria as conquistas do filme rosselliniano ou buscaria respostas próprias ao universo que o interessava, o drama e a luta do povo brasileiro em suas diferentes facetas. Um dos elementos de disparidade com relação à estética neorrealista em Rio, Zona Norte é não só a presença do ator profissional como certa concepção de interpretação dramática, de raiz supostamente stanislavskiana, já que a tradição brasileira é outra e se enraíza no circo-teatro de fins do século XIX. Daí, em princípio, a predileção futura pelo ser mais espontâneo, o “não ator”, assim como por sua caracterização interpretativa como um ser “bruto”, isto é, sem gestos maiores, impassível, com pouca modulação verbal, ou seja, no limite, sem uma inteligência emocional e intelectual maior, compensados por sua autenticidade, ética e solidariedade naturais. Nelson recusa essa visão de várias formas. Esse ser com vida emocional interior, Nelson já o havia encontrado nos morros cariocas e, em particular, no compositor Zé Kéti, fonte de inspiração direta para o Espírito de Rio, Zona Norte. Mais do que isso, ao trabalhar com Isaac Rozemberg, percebe neste o olhar solidário e interessado no humano em meio às grandes tragédias naturais e diante do compromisso profissional de realizar as demandas das empresas contratantes dos documentários. A origem imediata do projeto de filmar Vidas secas se deu durante uma enchente no interior da Bahia em 1958, quando trabalhava para a I. Rozemberg. Nelson trocaria quase todo o elenco profissional por não atores – o protagonista Átila Iório foi uma imposição do produtor Herbert Richers; e o hoje famoso Jofre Soares foi justamente descoberto por Nelson como marinheiro aposentado na cidade onde se fixou a produção do filme –, mas em sábia interpretação do “estado bruto” indicado por Graciliano, procurou justamente a antítese do estereótipo que tantas vezes perseguiu a figura popular, construindo uma dimensão humana para as personagens, distante do “burra” e “boçal”, realçando a composição emocional das personagens nos momentos mais dramáticos e nos clímax, como na famosa sequência da morte da cadela Baleia. O próprio Nelson filmou sozinho esta sequência com infinita paciência, esperando pelas “reações” da cadela.
Ou seja, dito de outra forma, Nelson busca não só uma superação de certas configurações estéticas pessoais e gerais mais ou menos tradicionais disponíveis na virada para os anos 1960 como também busca a experimentação das novas formas, reintroduzindo ou mantendo elementos mais antigos, ou inventando dimensões novas para o novo. De um lado, tem-se a aparente regressão da opção por uma narrativa linear e “realista”, vinda da literatura regionalista de 1930, e mais diretamente do romance, que foi adaptado sem quase nenhuma alteração. De outro, a incorporação quase que por completo do credo neorrealista enunciado acima. Um passo atrás, um passo adiante. Maestria de burilar o já conhecido a um ponto ainda desconhecido, como a decupagem (mesmo ao nível do campo/contracampo), os deslocamentos de câmara (travellings e câmara na mão discretos, mas de imensa precisão), a interpretação (personagens “brutas” reveladas por suas próprias emoções e não através da moldura estética) e o som e a dublagem (na abertura, o único som conceitual-metafórico de todo o filme; o que se chamaria hoje de edição de som, recria pioneiramente os sons e os silêncios do sertão, já que nos filmes anteriores a música dava conta disso). Ousadia de superar a suposta nova referência, que como a grande maioria das demais vinha do mesmo centro (Europa) e com o mesmo sentido (“nós somos a verdade…”). Uma arte verdadeiramente descolonizada, como preconizava Glauber e os cinemanovistas, procura seus próprios conceitos, meios, resultados. Um retrato cinematográfico comprometido com a realidade local precisa de uma estética local, que não é uma invenção formal absoluta, mas a detecção e superação dos princípios construtivos da expressão estética dominante concebida como nova. No caso de Vidas secas, paisagem, figurino, diálogos, personagens, ambiente, quase tudo já destacava o filme de uma inserção nas referências correntes de “drama rural local”. A opção tradicional era aproximar ou do estereótipo hollywoodiano ou da aparente redenção neorrealista. Uma invenção mais radical da ideia de Nordeste cinematográfico precisava considerar como se compunha de fato, in loco, tal imagem.
A resolução se associou à questão da “luz brasileira”. Como representar a luz inclemente do sertão? Como dar-lhe um papel dramático; origem e manutenção do cenário de fome, miséria, desolação que circunda a família de Fabiano e demais camponeses nordestinos? Como transformá-la no verdadeiro elemento bruto e insensível em cena, manipulado estética e politicamente?
Não era uma questão fácil. Como se sabe, ao desenho de luz clássico para o filme em preto e branco, apoiado na teoria das três fontes de luz (principal, de compensação e contraluz) e fundado na ilusão pictórica renascentista, que procura representar a imagem do mundo pela relação figura (pessoa)/fundo (paisagem) e, principalmente, pela adição de uma “profundidade visual” e esta relação, se sobrepôs a estratégia fotográfica neorrealista, que elimina justamente essa dimensão de profundidade. O cenário neorrealista se despe de ornamentos, a personagem como que fica “contra a parede” (encostada na parede, na linha do horizonte, no mundo), e a luz cria uma barreira única, perdendo contornos, surgindo como um “fundo neutro”. Na prática, se elimina a contraluz de cenas interiores e se “lava” a luz exterior, eliminando nuvens, esbranquiçando céus, produzindo uma imagem de cunho gravuresco. As personagens perdem sua dimensão psicológica, seu autocontrole, sua relação com o mundo (história + sociedade). Para a Europa, isso significava a crise do indivíduo burguês ao final de contas, como bem explorou Antonioni. O mundo popular, mesmo o europeu, era diferente, e deveria ter sido representado esteticamente de forma diferente, como argumentava Pasolini. E, para o Brasil, que ainda não formulara qualquer estética fotográfica para cinema mais insinuante, burguesa ou popular, com exceção da imagem epifânica e “rude” desenvolvida por Edgar Brasil para o clássico peixoteano Limite, um filme virtualmente desconhecido no final dos anos 1950, o que seria possível fazer?
A primeira sugestão veio de Glauber Rocha, que insistia na necessidade de mudanças nessa área de composição, e conseguiu convencer Nelson a experimentar a técnica da “lente nua”, originalmente associada ao fotógrafo de imagem fixa Henri Cartier-Bresson, e praticada no Brasil pelo repórter fotográfico do O Cruzeiro e recém-convertido a produtor de cinema, Luiz Carlos Barreto, que jamais fotografara para cinema. A técnica da lente nua consistia em um compromisso ético: produzir a foto in loco, sem uso de elementos adicionais à câmera, como luz, filtros etc., e sem maiores manipulações a posteriori no laboratório, utilizando basicamente exposição/obturação para a obtenção da imagem, o que acabava por produzir fotos mais “naturais”, menos posadas ou arranjadas, incluindo certos “erros”, tomados como expressão espontânea do mundo. A técnica tradicional de impressão e/ou realce das nuvens no cinema, tida como indicativa de um maior realismo cinematográfico, foi instituída por Edvard Tissé no inacabado Que viva México (1932), refinada por Alex Philips e Gabriel Figueroa, e ainda era dominante em um filme como Mandacaru vermelho. Consistia, justamente, em produzir tal tipo de imagem usando filtros, principalmente os Wratten das séries 29 e 85. Nelson decidiu experimentar a novidade, mas talvez de forma não tão radical, ou concebendo-a a sua maneira. Contratou um segundo diretor de fotografia, José Rosa, com quem acabara de trabalhar em Boca de Ouro (1962). Rosa era oficialmente operador de câmera e primeiro assistente, mas vinha atuando informalmente como diretor de fotografia desde O assalto ao trem pagador (1962), devido às limitações de movimentos do fotógrafo Amleto Daissé, que assinou os dois filmes. Rosa era ainda o sobrinho-neto de Edgar Brasil, herdeiro de suas técnicas “gravurísticas”. Barreto trouxe o conceito estético geral. Rosa entrou com a técnica e a realização prática. Mas ainda restava a questão, como fazer diferente dos neorrealistas?
A história tantas vezes contada do uso de uma estratégia clássica de luz, preferida por Rosa, e outra moderna, cujo adepto era Barreto, é conhecida. Após expor algumas cenas de uma e de outra forma, Nelson decidiu pela moderna. Mas a simples técnica da lente nua não seria suficiente para produzir a conhecida imagem do filme, em que a luz como que toma conta de tudo e fere até os olhos, parecendo rebater por completo o solo rachado do sertão. O filme utilizado, o Plus X da Kodak, se exposto para essa luz, deixaria todo o resto da cena na escuridão. Daí a conhecida solução de colocar o primeiro plano como se fosse uma silhueta em contraste nos planos gerais ou de conjunto. Além disso, Nelson não queria um privilégio da paisagem sobre as personagens, resultado que emergiu de Mandacaru vermelho. O privilégio era para o humano, o vivo, o social, atingido pela natureza e pelo descaso/exploração da sociedade. Ver as personagens era fundamental. Daí a inversão inovadora de expor a cena não pela média de luz medida em todo o quadro, ou destacando a paisagem, mas pelo interior do rosto da personagem, por vezes levemente iluminada por rebatedores, ou mesmo refletores nas cenas de interior (uma ligeira transgressão do princípio, mas executada com tal maestria que muitos acreditam que só haja luz natural no filme). Como a latitude da película não permitia, a restituição da relação radical de contraste, especialmente contra os céus, as paredes e os chãos “brancos”, se deu no laboratório Líder, em outra solução inovadora e genial, com a sobrevoltagem da lâmpada de copiagem, caso único ao que se saiba, embora a técnica fosse muito utilizada em filmagem por fotógrafos como Paulo Benedetti, nos anos 1920, e Hélio Silva, nos anos 1950. Estava completa a operação de construção da “luz brasileira” de Vidas secas.
A expressão, atribuída a Mário Carneiro, refere-se ainda a uma certa qualidade/brilho da imagem, que emanava das cópias originais de filmes desta época. Consegui assistir a uma cópia original de Porto das Caixas (1962), fotografado por Carneiro, cerca de 20 anos após sua confecção, e realmente a relação de contraste era mais viva e como que insinuante, embora a estratégia geral do filme estivesse mais para uma fotografia em tons cinza rebaixados (mais claros). Percebi algo semelhante com o único rolo positivo do lançamento original de Vidas secas, a que assisti junto com o mestre e restaurador final do filme Francisco Sérgio Moreira. Boa parte das informações aqui apresentadas vem dele, que tinha verdadeiro fascínio pela fotografia do filme e guardou até mesmo as folhas de marcação de luz originais, sabendo exatamente o que estava proposto como estética fotográfica. Chico lamentava justamente a dificuldade em recuperar a relação de contraste original e esse “brilho” associado. Requereria infinitos testes com o “flexamento” (flash ou velatura de base para a exposição do internegativo ou positivo em laboratório) do filme e talvez o uso do duplicate Technical Pan, que considerava adequado para essas situações, mas que tinha sido descontinuado pouco tempo antes da restauração empreendida nos anos 2000. Portanto, boa parte do espanto do mundo com o filme se devia a diversas maestrias, inovações, ousadias, descobertas e conjugações, e que recebiam essa pequena luz final das características de se fazer cinema no começo de uma década extraordinária, entre outros motivos por propiciar o encontro entre dois mundos cinematográficos em princípio tão diferentes e mesmo opostos, mas que foram conjugados de tal forma que implicam realmente em uma obra que permanece clássica em seu contar e inaugura um novo tipo de realismo, talvez o apogeu máximo para o cinema em preto e branco, que alguns anos depois cederia espaço à cor, ao vídeo e ao digital, meios que nunca alcançarão as mesmas possibilidades de expressão impressas nos fotogramas em tons de cinza. Obras de arte radicais costumam ser únicas em sua expressão e na resolução dos problemas que assumem, encaminham e repropõem como uma nova questão a ser retomada. Nelson nunca abandonou de fato o realismo, o ponto de vista da câmera, como dizia, mantendo com ele uma relação de tensão que permeia e, mais do que isso, estrutura toda sua obra, todo seu credo artístico.
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Hernani Heffner é conservador-chefe da Cinemateca do MAM, pesquisador e professor de história do cinema em diversas universidades e cursos livres como a Universidade Federal Fluminense, Fundação Getúlio Vargas, Fundação de Artes do Paraná e Puc-Rio. Escreveu mais de 100 verbetes para a Enciclopédia do Cinema Brasileiro, assim como dezenas de artigos e textos para catálogos, revistas e livros.
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